domingo, 31 de janeiro de 2010

Quando o Cabo da Roca foi o Centro do Universo






É do mar de Sintra que melhor se percebe
A vastidão impressionante, soberba no
Seu turbilhão de formas e de cores, desse
Paraíso de bosques, silêncio e brumas
.
VITOR SERRÃO


Mais cedo ou mais tarde, antes que o Sol caia no horizonte, um FALCÃO vai aparecer. Com o mar em frente o pensamento repousa na serena espera. Não há preocupações ambientais, não há teologias, há um presente sem peso. Escapa-se ao TEMPO, frente ao mar de Sintra, que se estende ao Sol, animado de oscilações e cintilações. Quem exala uma alma em quem? É a paisagem líquida que exala alma no observador ou é o observador que exala alma na paisagem líquida?

Numa qualquer manhã, sob um céu passivo, tudo possuía excesso de sentido. Não se queixa de uma existência monótona quem procura os surpreendentes espectáculos que a vida na TERRA proporciona. O olhar ia do mar à rocha quase a prumo - um desnível de cerca de 140 metros - e voltava ao mar para procurar na superfície líquida, o presumível lugar da misteriosa ilha de Londobris. Ptolomeu situa-a diante do Promontório Magno, o Cabo da Roca, e afirma que Lusitanos em fuga, desalojados dos Montes Hermínios, aí procuraram refúgio. Terá soçobrado Londobris durante violento sismo ou só existiu na fantasia do astrónomo? Entretanto um bando de irrequietas gaivotas animava o espaço aéreo. Irene Lisboa tem a sensação de que o canto das aves dilata o espaço, talvez. Sobrevoavam e davam movimento ao lugar mais ocidental da Europa (9º 30´ long. W).


A luz caindo do alto, a brisa que chegava com odor a mar e os gritos das gaivotas activavam a memória de recente espectáculo e, também, a memória de antigas leituras que têm por cenário esta orla costeira. A bela arméria, que ninguém planta, espécie endémica do Cabo da Roca, que tocada pelo Sol rutilava, tinha ficado para trás, mas a súbita e impressionante aparição do vasto espaço por onde ela se espalhava, perdurava. A memória de antigas leituras que poeticamente narram sugestivas lendas activava a fantasia, e povoava o lugar de estranhos seres: sereias cantando melodiosamente, os correspondentes masculinos, metade homem metade peixe nadando preguiçosamente ou descansando sobre as rochas e, por aqui e por ali, os tritões que Damião de Góis fantasiou.

Da foz da Ribeira do Falcão, no termo Norte do corpo de Sintra, a costa, desdobra-se em falésias que crescem à medida que se aproximam do focinho da Roca. As vagas batidas pelo vento tropeçam nas arribas e da erosão, resultam grandes e vistosas rochas que desagregadas constroem recantos labirínticos. A estabilidade arquitectónica de certos espaços é periclitante. Recessos onde um FALCÃO possa nidificar e criar os filhotes, sobejam.

Quando o pensamento divagava sobre o privilégio dos falcões de Frederico II que eram tratados por poetas, e sobre a Beleza que começa por ser uma experiência íntima, um olhar distraído varreu o céu e descobriu lá bem no alto, um ponto negro. Seria o aguardado FALCÃO?


Era um FALCÃO, já evoluía pelo espaço, já não era apenas uma ponto a grande altura. Que ostentação, sentia-se em casa. Subitamente o voo alterou-se, tornou-se agoirento, perseverante, centrado num terreno próximo, coberto de vegetação onde coelhos e perdizes habitam. O FALCÃO não precisou de Mestre para, exprimir o invisível conteúdo dos seus propósitos. Caiu do alto como uma seta sobre certa perdiz mas a agilidade desta foi o seu fracasso. Parado a um palmo do chão voltou a subir e, pouco tempo passado, outra investida se seguiu e desta vez com êxito, certamente. Ele mantinha-se em terra, não era visto mas adivinhava-se a cena. Quando voltou a sobrevoar aquele mar de Sintra era um FALCÃO triunfante.

O espaço onde a arméria vicejava pedia nova visita. Crescem sozinhas e sem cuidados. A Beleza do conjunto fazia esquecer que cada flor é a manifestação externa, das forças interiores da planta a que pertence e a interferência das forças do ambiente: exposição ao vento, posição dominante do Sol, expansão do grupo. Rudolf Arnheim declara num misto de graça e de conhecimento que o Homem sem corar, contempla o órgão sexual da planta, desavergonhadamente exibido e impudicamente colorido, e tão longe vai na sua má interpretação que se regozija em ver na flor pureza do que não tem função definida.

Naquele dia um triunfante FALCÃO e um conjunto de belas e delicadas armérias fizeram do Cabo da Roca o centro do Universo.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Jesus de Nazaré provavelmente Poeta (IV)


Antes do Princípio

Para o adolescente tudo é monotonia, enfado, castigo. Também depressa tudo passa. Um repto, uma ideia ousada, uma lem-brança, uma colher cheia de alimento, um passeio pelo campo varrem melancolias.

Vive-se mais um sábado na cândida aldeia de Nazaré. O Sol é brando e a brisa pede licença para passar. Está à porta de casa. Os olhos não encontram onde poisar, vão do pátio ao morro da frente, da tira da sandália à nuvem que muda de forma. Sabe-se lá o que passa pela cabeça do teenager Jesus, à porta da casa, num tranquilo dia de sábado.

Poderá sentir descanso com o futuro a chamar por Ele?

Entretanto passa mais um movimento de rotação da Terra e outro e outro. Num dos habituais passeios pela colina, encontra um grande rebanho mas não vê o pastor. Os olhos percorrem o espaço envolvente. Que se passará? Senta-se e decide contar as ovelhas que pastam, são 99.

O tempo passa e o pastor aparece com uma ovelha sobre os ombros. Estava perdida e encontrou-a, abandonara 99, para ir buscar a que se perdera. Retém o episódio, talvez um dia mais tarde o conte a alguém.

Que pensará Ele da história de Sansão, o que feriu mil homens com a queixada de um jumento?

Que pensará Ele de Jonas, o que esteve três dias e três noites dentro do ventre da baleia nas profundezas oceânicas, por não querer ir pregar a Ninive?

Que pensará Ele da prostituta Raabe, da queda dos muros de Jericó, do massacre que se seguiu?

Prefere pensar na criança que foi, porque em todo o começo há um encanto e… encontra-a:
Mima o gato e mima o cão, sai a correr pela porta da rua e só volta quando, já cansado das brincadeiras com os outros miúdos, sente no ar o cheiro do pão ázimo que coze no forno.


P.S. A Proclamação do Acto Poético em Oito Pontos de H. C. Artmmann declara no primeiro ponto: Há um princípio intocável, que diz que se pode ser poeta sem jamais ter escrito ou pronunciado uma palavra.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Jesus de Nazaré provavelmente Poeta (III)


Pelos Caminhos da Palestina

O Homem possui a Natureza e a Natureza possui o Homem. O Homem recebe o sopro do espírito dos lugares e com ele, lança-se na vida, atira-se em todos os sentidos. Entre o ânimo do bem-sucedido e o desânimo do que caminha como “cão sem dono”, há o que baloiça de cansaço. Uns e outros adensam o espírito do lugar e é por isso que cada geração, para o bem e para o mal, deixa a sua marca no cenário natural que habita.

A Palestina é uma pequeníssima porção do planeta que milénios de história tornaram grande. À faixa de terra quase completa-mente plana que se debruça sobre a costa do Mediterrâneo oriental segue-se um conjunto de formas, umas mais volumosas do que outras, cujos cumes, uns aguçados outros ondulados, adornam a paisagem. O Rio Jordão cruza o espaço e, depois de passar pelo Lago Tiberíades, também chamado Mar da Galileia, vai lançar-se num outro mar que possui a mais elevada concen-tração de sal do mundo, o Mar Morto. Vespasiano, quando no ano 68 e. c. caminha para Jerusalém, passa por ele e, duvidando do que se dizia sobre a sua singularidade, manda lançar no fundo das águas homens de mãos amarradas. Para seu espanto, voltam à superfície. Sujeito a forte evaporação, este mar interior tem uma salinidade tão elevada, que não é possível desenvolver qualquer forma de vida no seu interior.



A faixa de terra plana sobre a costa do Mediterrâneo, os oásis e os vales fluviais, são alternativa às areias dos desertos e às rochas. Os caminhos alongam-se, ondulam, acomodam-se às características do terreno. Por eles, anda Jesus de Nazaré. Os escritores que publicaram a sua oralidade desenham-lhe a imagem de persistente e infatigável caminheiro. Imagine-se a poética daquela jovem figura envolta em ampla túnica, sandálias nos pés, num imparável vaivém, seguido, rodeado ou aguardado por homens e mulheres, alguns semelhantes a personagens de pesadelos.

Dirige-se ao melódico Rio Jordão. As veredas e os recantos sucedem-se. Ora luz ora sombra, paira pelo ar o cheiro da flor que ninguém semeou, ou da seiva da árvore do caminho. Talvez o Mestre pense na energia que fez crescer as pequenas sementes que estiveram na origem de uma e de outra. Um festival de formas, de luz, de cor oferece-se ao olhar. Já o rio se avista ao longe, já sente a frescura do ar, já a água lhe refresca os pés. Paira uma calma alegria pelo ar. Uma voz, a de João Batista, abafa o rumorejar do rio: Eu careço de ser baptizado por ti e vens tu a mim?

Assim nos convém cumprir toda a justiça, responde-lhe o Mestre.

A odisseia está em marcha, o Rio Jordão apaga-se na curva, os sonhos estão na estrada. Cada passo que dá, é mais um segmento da sinuosa linha que vai dar a Jerusalém. No Templo, o Mestre conhecerá uma mulher. Não há encontro marcado, mas é preciso estar lá na hora certa.

Caminha para Nazaré, humilde aldeia onde foi criado, tão humilde que não vem mencionada na Bíblia Hebraica, nem na literatura rabínica, nem mesmo na vasta obra de Josefo, que no ano 67 do primeiro século foi governador e general da Galileia. Jesus quase ouvia a notícia do nascimento deste importante historiador, da tribo de Levi ocorrido em Jerusalém no ano 37. Na Sinagoga de Nazaré, Jesus, abre o Livro do Profeta Isaías e lê: O Espírito do Senhor, é sobre mim, pois que me ungiu para evangelizar os pobres, enviou-me a curar os quebrantados de coração, a apregoar a liberdade aos cativos a pôr em liberdade os oprimidos. Fecha o livro, comenta a leitura e deixa o auditório perplexo. Não é este o filho de José? Sussurram alguns.



O coração da Palestina vibra a um ritmo desusado, aquele jovem sonhador pisa velhos caminhos que ganham novo espírito. Move-o uma Força irreconhecível, não descansa quem quer alegrar o mundo e, para isso, só trazendo o fogo do céu para a Terra. Deixa Nazaré onde foi criado e desce até Cafarnaum junto ao Mar da Galileia. Os habitantes da região vivem da agricultura e da pesca. Josefo, no livro GUERRA informa que por ali cresciam nogueiras que precisavam de um clima particularmente frio … palmeiras que necessitavam de calor, bem como figueiras e oliveiras que precisavam de um clima mais ameno… uvas e os figos. Com o mar ali, Jesus pode entrar numa embarcação, ouvir o bater compassado dos remos, apreciar a luz que treme nas águas, assistir à faina da pesca. Curiosamente em 1985 depois de um Inverno muito seco, membros do Kibutz de Ginosar situado a cerca de dois quilómetros da antiga Magdala, descobrem uma modesta embarcação do primeiro século. Há quem goste de pensar: Será o barquinho de Pedro?

Cresce o número dos que procuram o Mestre, dos que aguardam a sua passagem, dos que o seguem, dos que inventam processos para o ver melhor, para tocar-lhe. Aquilo já não é uma caminhada até Jerusalém, antes parece, uma coreografia, uma dança de expressão, onde homens e mulheres revelam sentimentos. Acu-mulam-se os movimentos. Quem sabe se uma música os acompanha? Aristóteles, referindo-se a pensadores que o precederam escreveu um dia: Dizem eles, quando o Sol e a Lua, e todos os astros, que são tão grandes em número e em tamanho, se movem com um movimento tão rápido como não haviam de produzir um som imensamente grande … o som produzido pelo movimento circular dos astros é uma harmonia. Contudo, uma vez que parece injustificável que não ouçamos esta música, eles explicam isto dizendo que o som está em nossos ouvidos desde o momento do nascimento e é assim indiscernível…o que acontece aos caldeireiros que estão tão acostumados ao barulho da forja que já não lhes faz qualquer diferença.

Bartimeu, o cego, mendiga à beira do caminho. Talvez não ouça o som harmónico do movimento dos astros, embora possua ouvidos bem apurados. Distingue o canto da ave, a canção das águas, o restolhar das folhas, a respiração dos montes, a brisa que o toca. Apercebe-se de um coro de vozes que se aproxima. É informado que passa o Mestre. Implora-lhe misericórdia. Misericórdia concedida junta-se ao grupo e segue-o. Avançam, encurta-se a distância que os separa do Templo. Do outro lado do monte um grupo de Mães aparece. Sonham com uma vida melhor para os filhos que têm ao colo. Interrompem o movimento de Jesus e pedem-lhe que toque nos seus meninos. Ele, tomando-os nos seus braços e impondo-lhes as mãos abençoou-os. Agradecidos, os olhos, dizem mais que muitas palavras.



Quando o cenário é o interior de uma casa onde Jesus de Nazaré, presença agradável, é convidado de honra, o movimento fica lento, descontraído. Algumas cenas de interior são muito belas, a que se segue é uma delas: Em casa de Simão, o leproso, aproximou-se dele uma mulher com um vaso de alabastro, com um unguento de grande valor, e derramou-lho sobre a cabeça, quando ele estava sentado à mesa. Os presentes agitam-se, um rumor de vozes enche a sala, cada um tece a sua teia.

Jerusalém aproxima-se. No Templo o Mestre conhecerá uma mulher. Não há encontro marcado mas é preciso estar lá na hora certa. A marcha, que prossegue, é interrompida por estranhas personagens. São náufragos de grandes tempestades, para quem o sol é sempre baço. O relato bíblico descreve a cena: Entrando numa certa aldeia saíram-lhe ao encontro dez homens leprosos os quais pararam de longe … dizendo: Jesus, Mestre tem misericórdia de nós. É o flagelo da lepra, que viver o dos leprosos! A misericórdia é concedida aos dez mas apenas um, volta para agradecer a bênção.

Dos ajuntamentos sempre sai alguém para a ribalta do futuro. O episódio tem graça. Jesus de Nazaré está numa das cidades mais antigas do mundo. Jericó, situada a 16 quilómetros a noroeste do Mar Morto, já era habitada no II milénio a.e.c. É um oásis alimentado por uma nascente perpétua. Hoje a cidade chama-se Tel el Sultan sendo a palavra tel um cômoro formado pela acumulação sucessiva de povoamentos. Jesus passa por uma rua arrastando consigo numeroso grupo. Alguém de baixa estatura não O con-segue ver e, por isso, corre, corre, até tomar a dianteira do ajun-tamento que flui lentamente. Sobe a uma figueira e aguarda. Qual não é espanto do pequeno homem empoleirado na árvore, quando Jesus pára em frente dele e diz-lhe: Zaqueu desce, hoje vou ficar na tua casa. O Evangelho de Lucas informa que Zaqueu era chefe dos publicanos, profissão muito criticada que gerava desconfianças, melhor dizendo, ele era um homem corrupto. O relato bíblico informa ainda, que o pequeno homem dá um grande passo: promete restituir o que havia roubado e ainda promete dar avultadas quantias aos pobres. Terá cumprido a promessa?

Já se avista a Cidade Santa, onde muitos acreditam que habita a presença divina. Construída sobre colinas está cercada de ravinas e muralhas. Entre o ângulo Noroeste da Muralha e o Monte Escope há pomares e hortas, informa Josefo . O Mestre dirige-se para o Templo, por velhíssimas ruas. Ele sabe que as tempestades que se geram no Mar da Galileia são bem mais fáceis de acalmar do que as tempestades que se geram naquele Templo que, do alto, impressiona o mais indiferente. Muitos contribuíram para que Deus tivesse aquela digna morada. Monumento de tamanha beleza, construído em pedra de um branco resplandecente, é uma fortaleza. A espiritualidade da grande religião tem ali um corpo. Salomão sobre outro Templo que naquele lugar edificou, o que foi destruído por Nabucodonosor no ano 586 a.e.c. teve este desabafo: Mas na verdade habitaria Deus na terra? Eis que os céus, e até o céu dos céus te não poderiam conter quanto menos esta casa que eu tenho edificado. Herodes, embora tenha ordenado que os sacerdotes aprendessem o ofício de canteiro para que os leigos não entrassem nas áreas mais sagradas, não teria pensamentos com meandros tão subtis.

Alguma coisa está para acontecer. Naquele dia o autor do Evangelho de João informa que, vindo Jesus do Monte das Oliveiras pela manhã cedo tornou para o templo e todo o povo vinha ter com ele e sentando-se os ensinava. Eis que enquanto assim estava sentado a ensinar, dirige-se para Ele um grupo formado por escribas, fariseus e uma mulher. Alguém está a faltar neste grupo! Um rumor das vozes anuncia que estão perto.


Deve ter sido um fariseu o primeiro a falar, eles tinham fama de conhecer as leis ancestrais com mais precisão que ninguém. Colocando a mulher no meio diz: Mestre, esta mulher foi apanhada, no próprio acto, adulterando, e na lei nos mandou Moisés que as tais sejam apedrejadas. Tu pois que dizes? O relato evangélico informa que Jesus inclinando-se escrevia com o dedo no chão. Entretanto, como diria o poeta, os céus sustêm a respiração. Jesus de Nazaré endireita-se e diz estas perduráveis palavras: Aquele que dentre vós está sem pecado seja o primeiro que atire pedra contra ela. Volta a inclinar-se e continua a escrever sobre a terra. Reina pesado silêncio. Começando pelos mais velhos, escribas e fariseus, um a um, abandonam o lugar. Fica o Mestre e a mulher.

Mulher, onde estão aqueles teus acusadores? Ninguém te condenou? Pergunta Jesus.

Ninguém, Senhor, responde a mulher.

Nem eu também te condeno; vai-te e não peques mais.

Jesus de Nazaré dá rosto humano ao Deus invisível.

sábado, 19 de dezembro de 2009

Querido Pai do Natal, Sereníssima Alegria

Quão admirado sois no Planeta Terra!

Como se alegram e pulam de prazer as crianças quando a hora da vossa visita se aproxima!

Como cantam maravilhas os que são agraciados por vós!

Também eu faço parte desse coro sinfónico porém, não poucas vezes, interrogo-me: Como lidará VOSSA SERENÍSSIMA ALEGRIA, com o “caos” que representa o conjunto dos pedidos que recebe? Que estratégias usará para localizar os diversos lugares que visita? Perdoe-me a imagem, mas comparo-o a um bibliotecário que tem milhões de livros para arrumar em quilómetros de prateleiras.

O pedido que hoje vos dirijo é pouco ortodoxo, não consta de um mimo para esta ou aquela criança, para este ou aquele amigo, nem mesmo para mim. É um convite que lhe dirijo e, se VOSSA SERENÍSSIMA ALEGRIA aceitar, honrará esta esplendorosa Península que habito e quase se solta do Continente que a segura. Em primeiro lugar considere-a seu jardim agora “pinto-a” com algumas, palavras:


O ambiente natural é muito belo. Quando o Sol mergulha no azul irreal e líquido dos mares e nas águas rumorejantes dos rios, quando o Sol incide sobre as colinas, prados, e sobre montanhas que orgulhosamente se exibem pela paisagem, quando as flores exalam e a chilreada das aves enche os ares, temos um luxo de cores de sons e de cheiros. A Beleza estoira nestes 598 000 quilómetros quadrados de superfície, habitados por cerca de 55 000 000 pessoas, gente boa, empreendedora, aventureira, sonhadora. É certo que também há os que têm comportamentos dissonantes e sem nesga de lucidez, mas não são assim tantos. Envio as coordenadas deste maravilhoso pedaço de terra para facilitar a sua localização: 43º 48’ - 36º Lat. N e 9º 30’ Long. W – 3º 19’ Long. E.

Infelizmente nem tudo corre bem por cá. No Verão, quando o Sol abrasa, saltam fogos por aqui e por ali. Este abominável braseiro, é um verdadeiro inferno. Nos milhares e milhares de hectares de terra queimada sente-se o suspiro da Natureza, o seu lamento, até o Sol empalidece. Onde está a frondosa árvore? Que resta daquela inundação de verdura? Calou-se o canto do melro e o gaio também já não se ouve nem o rouxinol.


Sabemos que uma Terra sem fogos depende de todos, sabemos que em zonas florestais é proibido fumar ou fazer lume de qualquer tipo, lançar foguetes ou balões de mecha acesa, realizar queimadas para renovação de pastagens, queimar sobrantes agrícolas ou florestais, porém, a imprudência e a malvadez de alguns são fatais. Para acabar com o flagelo criámos a ASSOCIAÇÃO DOS PROMOTORES PARA UMA PENÍNSULA SEM FOGOS. Batemo-nos por este elevado ideal que certamente louvará e, certos disso, ousamos convidar VOSSA SERENÍSSIMA ALEGRIA para Presidente honorário da nossa ASSOCIAÇÃO.

Mas não é tudo. Outras preocupações se juntam a esta: O Lince-ibérico e a Águia-imperial encontram-se numa situação de pré-extinção. Para inverter este declínio há um Plano de Acção que visa contribuir para assegurar a viabilidade das duas espécies. Neste território.

Para o Lince-ibérico há um programa de reprodução em cativeiro e de criação de condições adequadas em habitats potenciais.


Para a Águia-imperial, uma das espécies de rapinas mais raras do mundo, há um programa de monitorização de casais conhecidos, a prospecção de novos casais e de diluição de ameaças que se apresentem ao longo da época de reprodução. Com estas e outras medidas espera-se que em breve muitos lincezinhos e águiazinhas venham a nascer.

E eis que chegou o momento certo para fazer o novo convite: Convido VOSSA SERENÍSSIMA ALEGRIA para padrinho das crias que nascerem.

Desejo que receba muitos pedidos que beneficiem grandes comunidades.

Sua admiradora,
Filha do Luar

domingo, 13 de dezembro de 2009

Jesus de Nazaré provavelmente Poeta (II)



Jesus entre os Poetas

Se Jesus de Nazaré deu forma escrita ao sistema moral que divulgou em ministério itinerante, se na arquitectura de um poema construiu um Reino de Justiça, Beleza como a humanidade nunca conheceu, se deu contornos poéticos a profecias e sonhos, se teceu cantos de alegria e louvor às maravilhas do mundo natural, nada se conservou ou, tudo ainda está por descobrir. Os Manuscritos do Mar Morto, documentos preciosos que religiosos judeus esconderam nas grutas calcárias de Qumran, situadas entre Jerusalém e o Mar Morto, só em 1947 foram encontrados. Uma década de escavações proporcionou a descoberta de mais de 800 papiros e fragmentos de pergaminho, escondidos durante cerca de dezanove séculos.


Porém, para descobrir um poeta em Jesus de Nazaré, importa menos valorizar a fecundidade conotativa das metáforas, das valências simbólicas, dos duplos sentidos, das significações plurais que brotam dos seus ensinamentos, do que considerar a preocupação que manifesta pelos desprotegidos, a coragem que mostra quando aperfeiçoa o património espiritual que recebeu, a singularidade das atitudes que tomou. Deste imenso universo, sobressai a simplicidade na escolha dos discípulos mais íntimos. Dispensando currículos e entrevistas, passa, observa, escolhe e diz ao eleito: Deixa tudo vem e segue-me. A sugestão que dá a quem oferece banquetes é ousada: convida os pobres, os aleijados os cegos, os mancos. O conselho dirigido ao jovem cheio de qualidades que deseja ser ainda mais puro, é irrealizável: Vende tudo o que tens, dá aos pobres e segue-me. A lei que acrescenta ao decálogo e que ainda está por cumprir: Amai-vos uns aos outros.


Ora sendo a poesia uma longa aventura da imaginação do Homem qual é o seu valor absoluto? Onde reside grandeza de um poema? Que pensam os poetas do engenho que possuem? Neruda, no livro CONFESSO QUE VIVI escrito mesmo no resto dos seus dias, informa que o amor e a Natureza são os alicerces da poesia que escreveu e acrescenta: Coube-me sofrer e lutar, amar e cantar. Tocaram-me na partilha do mundo triunfo e derrota, provei o gosto do pão e do sangue. Que mais quer um poeta? Depois, narra curioso episódio, que elege como o maior prémio obtido em toda a sua vida, maior que o Prémio Nobel que recebeu em 1971. Passa-se no vale de Lota, porto do Chile central. Um mineiro de face alterada pela dureza do trabalho, olhos avermelhados da poeira, sai de uma cova aberta na escarpa como se emergisse do inferno, vê o poeta, estende-lhe a mão calejada e diz: Conhecia-te desde há muito tempo irmão. Neruda, comovido, comenta as palavras e o gesto do mineiro: o vento e a noite e as estrelas do Chile disseram-lhe muitas vezes: Não estás sozinho; há um poeta que pensa nas tuas dores. O poeta sabe com quantas dores se tece a vida humana.


Quais serão os alicerces da oralidade do Mestre Nazareno? Um dia, deslumbrado, olha os lírios do campo, outro dia diz para um conjunto de rostos onde a miséria se desenha: Olhai os lírios do campo como eles crescem; não trabalham nem fiam…nem mesmo Salomão em toda a sua vida se vestiu como qualquer deles. Um dia vai pelos caminhos, olha as aves que passam velo-zes e observa os pássaros que chilreiam nas árvores, outro dia rodeado de gente envolta numa aura de tristeza, gente que se resigna a viver sem sonhos, diz-lhes: Olhai para as aves do céu, não semeiam não ceifam, não juntam em celeiros e Deus as alimenta. Aos oprimidos, aos pobres, aos pacificadores, aos misericordiosos, aos que têm fome e sede de Justiça, promete que um dia serão fartos, consolados, serão chamados filhos de Deus, viverão num Reino, onde o cordeiro convive com o lobo. Quem o via e ouvia, levava-o na memória.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Jesus de Nazaré provavelmente Poeta (I)



Um Caminho de Palavras

Antiquíssimos tempos decorrem, e já a palavra anima o panorama mental do Homem que, entre tímido e ousado, explora o cenário natural onde desenvolve uma experiência, a de viver. Percorre os caminhos que se oferecem para o desconhecido, olha o alto e olha ao longe, a luz excita-o, a cor surpreende-o, está numa aventura e não sabe porquê. Entre a diversidade das formas e dos seres - montanhas, planícies, rios, mares, desertos, mil maneiras de ser árvore e de ser flor, mil maneiras de ser ave e de ser peixe - sente-se um estranho. Tudo freme, tudo muda, tudo brilha à sua volta. A fantasia está prestes a explodir como num sonho, é o mito a germinar. Se, como Popper afirma, poesia e ciência nasceram do mito, então este germina na cabeça ou no coração do antiquíssimo Homem?



Forte, expressivo, o pensamento enreda-se nos mistérios cósmicos e esboça o perfil do sagrado. Algumas especulações atribuem à palavra um poder criador. No Livro do Génesis, Deus cria os seres nomeando-os. A magia acontece através da voz de Deus que do nada faz tudo. Disse Deus: Haja luz. E houve luz. … Disse Deus: Haja luminares na expansão dos céus … E assim foi … Disse deus: Produza a terra alma vivente…

A palavra, obra-prima da singularidade humana, é insubstituível nas diversas funções da rotina quotidiana, é preciosidade para o poeta que com ela tece jubilosos ou doridos versos por onde passam todas as vozes da humanidade, é valor que o cientista utiliza para ir revelando a história deste Universo em expansão cuja estrutura ainda não acabou de descobrir.

O poeta Jorge Luís Borges adverte: a língua não é, como o dicionário nos leva a crer, invenção de académicos ou filólogos. Pelo contrário, foi desenvolvida ao longo do tempo, durante muito tempo por camponeses, pescadores, caçadores, cavaleiros. Não veio das bibliotecas, veio dos campos, do mar, dos rios, da noite, da madrugada. Há palavras que transportam o peso de uma antiquíssima história e por isso conservam-se em perpétua floração. BELEZA, JUSTIÇA, DEUS são algumas. As suas fronteiras tocam-se, cruzam-se, invadem-se. O oráculo de Delfos pronunciando-se sobre critérios de avaliação da BELEZA afirma: O mais justo é o mais belo; Jesus de Nazaré, certo dia no Templo diz: Eu e o Pai somos um; o poeta José Régio, talvez inspirado nestas palavras do Mestre, ousa afirmar: Deus, sou eu levado à perfeição. Falar de Deus sempre foi e será, uma audácia poética.


A mais simples palavra sai sublimada da pena do poeta: Os olhos da minha amada brilham mais que as estrelas, escreveu Shakespeare; eu sou a água viva, quem beber desta água não mais terá sede, disse Jesus de Nazaré. Que pensará o poeta desta matéria-prima que usa e ajusta ao pensamento?

Eugénio de Andrade atribui-lhe violência e fragilidade, São como um cristal, as palavras. / Algumas, um punhal, um incêndio. / Outras, / orvalho apenas. Neruda entusiasma-se: são as palavras que cantam que sobem e descem. Prosterno-me diante delas … Amo-as, abraço-as, persigo-as … Brilham como pedras de cores, saltam como irisados peixes, são tão belas quero pô-las todas no meu poema … Tudo está na palavra … Elas têm sombra, transparência, têm tudo quanto se lhes foi agregando de tanto rolar… de tanto transmigrar de pátria de tanto serem raízes … Jesus de Nazaré compara a palavra à semente que o lavrador lança à terra. Certo dia, estando Ele junto ao Mar da Galileia, reúne-se tamanho grupo à sua volta, que decide entrar num barquinho. O mar ali, o céu alheio e distante e um grupo de gente simples, alguns protagonistas de tristes histórias, olham a jovem figura do Mestre e ouvem estas palavras: saiu o semeador a semear; e aconteceu que, semeando ele, uma parte da semente caiu junto do caminho e vieram as aves do céu e a comeram; e outra caiu sobre os pedregais … mas, saindo o Sol, queimou-se, outra caiu entre espinhos e crescendo a sufocaram e não deu fruto. E outra caiu em boa terra e deu fruto que vingou e cresceu. Órfãos de sonhos, olhos húmidos e tristes, não entendem, o que o Mestre diz, perdem-se no labiríntico discurso. Porém, olhá-lo e ser olhado ou olhada por Ele, isso lhes basta. Era tão jovem ainda! Até os discípulos mais íntimos perguntam: Que parábola é esta? O Mestre responde-lhes: A semente é a palavra.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Francisco Bugalho, o poeta que pintou a Natureza



Francisco Bugalho, o poeta a quem José Régio chamou o pintor da Natureza, recorre a uma expressiva paleta de sensações com que ilustra a Natureza, transcendendo os sentidos pela sua faculdade de sonhar, contemplar, cismar e abandonar-se.

1- A poesia é um domínio singular, onde a Natureza é protagonista e a experiência humana princípio activo. Das percepções sensoriais às ideias mais rarefeitas, atitudes simples de laborar e amar, são sementes de arte para o poeta, por cuja compreensão passam os fenómenos e as forças que os animam. Mas Herbert Read afirma que “tem sido sempre função da arte, dilatar a mente um pouco para além dos limites da compreensão. Essa distância para além, pode ser espiritual ou transcendental, ou simplesmente fantástica, algures tem de passar além dos limites do racional”.

Assim, numa sociedade organizada segundo a racionalidade dos meios, que lugar ocupará a poesia? E como a substância poética contém um universo de valores – estéticos, intelectuais, éticos, ambientais … - que tipo de relação se estabelece entre poeta e leitor?

Francisco Bugalho, a quem José Régio chamou “pintor da Natureza”, encontrou no real um filão de maravilhoso. A Natureza que está na raiz da sua inspiração resplandece na obra deste poeta. Em cada poema percebe-se um movimento circular em torno da realidade, seja uma árvore, serra, fim-de-dia ou dois meninos. O movimento evolui e consuma-se quando, poeta e real, encontram a relação justa. O poema Montado Velho, entre muitos outros, é um exemplo bem significativo.

Começa assim:

Meu triste montado velho
Que paz tem quem te procura
E, em ti, vem achar o espelho
De uma vida sem doçura,
Mas livre de enganos vãos ! …


Francisco Bugalho terá deambulado pelo labirinto rumorejante das árvores do montado e a par dos equilíbrios de alma, que o poema deixa adivinhar, revitaliza a imaginação. Ora espiritualizando o real, ora concedendo concretismo a fenómenos físicos e psicológicos o poema continua:

Troncos rugosos, mas sãos,
Ásperos, sim, mas generosos,
Todos, na desgraça, irmãos,
Dos maus Invernos ventosos
E dos verões, sem pinga d’água.

Montado, que estranha mágua
Te confrange e te redime !
A tua visão afago-a .
És bom cenário pra um crime …
E pra milagres também.

O Poeta passa depois a informar o montado da existência de outros espaços, com outras cores e brilhos e outros sons.

Montado, além, mais pra além,
Há céus azuis e há searas.
E brandas águas que têm
O brilho de pedras raras,
E não há só solidão ! …

Solidão que experimenta quem está domiciliado num mundo à parte? Os atractivos enumerados, não seduzem o poeta, que permanece com o montado. Realiza-se a unidade entre ambos.

Mas essa tua canção
- solução d’alma que anseia –
Também a meu coração,
Furtivamente se enleia.
E aqui me fico contigo.

Sem ternura, nem doçura;
Mas longe do mundo vão,
Meu velho montado amigo ! …


É sempre preciso um poeta. Ele conduz-nos a um mundo mais vasto, mais ardente, mais belo, onde as dissonâncias se resolvem em harmonias.

2- Em 1960 José Régio escrevia assim: “Pela simples vivacidade dos sentidos, ainda Francisco Bugalho não seria o poeta que é; sendo já, sem nenhum desperdício de palavras, um belo pintor da Natureza … Os conhecidos sentidos … multiplica-os, transcende-os o poeta pela sua faculdade de sonhar, contemplar, cismar, abandonar-se. Eis que a sua comunicação com a Natureza vai muito além, assim, do primeiro contacto e penetra-a até aos seios do mistério …”. E é destas faculdades de “sonhar”, “contemplar” e de “cismar”, referidas por José Régio que nasce a obra do poeta, a importância do seu pensamento.

Se cada arte tem o seu próprio público, cujo comportamento e pensamento influencia, que acção escreverá a poesia ?

Diz-se que a poesia proporciona prazer. Porém, não existe só, para que os leitores alcancem a plenitude dos bem aventurados.

Na obra de Francisco Bugalho, o tema da relação entre os seres, aparece em diversos poemas. Num tempo em que os abusos inflingidos sobre a fauna e a flora são frequentes e por vezes irreparáveis, é útil conhecer outras formas de relacionamento. O poema Humildade demonstra que a vida quer esteja no Homem, nos animais, ou nas plantas é sempre a vida.

HUMILDADE

As águas beijei,
As nuvens olhei,
As árvores cantei,
Na sua beleza.

Os bichos amei,
Na sua bruteza,
Na sua pureza,
De forças sem lei.

E porque os amei
E os acompanhei,
Não me senti Rei
Na Mãe-Natureza.

Através de diversos encaminhamentos, e a poesia será um dos caminhos, nasce o desejo de estabelecer um modo melhor de regulamento, das relações entre o Homem e o meio natural.

Francisco Bugalho, o poeta “pintor da Natureza” terá vivido na perspectiva da eternidade. O poema A uma Árvore, celebra o triunfo da vida. Uma árvore que o poeta plantou, acompanha o ritmo das estações, regenera-se ciclicamente, ouve os sonhos dos filhos do poeta e eterniza-o.


A UMA ÁRVORE

Árvore
Quando eu morrer hás-de ficar.
Hás-de ver o passar doutras Estações.
Hás-de ouvir as canções
De uns outros ninhos, noutras Primaveras.
Junto de ti, meu filho há-de sonhar
Minhas antigas, fúlgidas quimeras.

Árvore
Quando eu morrer, hás-de falar
De mim, que te plantei.
E, em cada ramo novo que brotar,
Serás um gesto meu a perdurar:

- Por ti, não morrerei

Além do mais, a obra que Francisco Bugalho deixou, é algo de si mesmo, que está vivo.

- Bugalho, F. (1998). Poesia. 2ª edição. Editora LG, Lisboa.