sábado, 21 de novembro de 2009

Saber Ver


Como escreveu Pessoa, não basta não ser cego para ver as árvores e as flores. Se é preciso saber ver para realizar uma obra de arte, o mesmo se requer depois para compreendê-la, tal como com a Natureza.


Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores
Fernando Pessoa

Entre a esperança e o desespero vive-se uma odisseia iniciada num tempo sem princípio e, para ela, reclama-se perenidade e bom ambiente. A Natureza é o palco da aventura e os protagonistas, confrontados com os enigmas do universo e da vida, descobrem que a imaginação é um poderoso complemento da visão e deslumbram-se com a capacidade de criar. É por isso que, sob o mesmo céu e no meio de tantos fenómenos, sobressai a vastidão e precisão do conhecimento científico e cresce uma história fantástica, inspirada na infinita adição de obras de arte, de todos os tempos e de todas as origens. Ciências da Natureza e Arte, duas vias divergentes da mesma aventura intelectual, são o que de mais brilhante e de mais belo gerou a mente humana.

A paixão de conhecer apoderou-se do Homem e o desejo de compreender a própria existência e a complexidade prodigiosa do mundo visível alimenta-lhe o interesse por esse todo do qual faz parte. Ciência e Arte envolveram-se na empresa, por diferentes caminhos. O artista, cuja fantasia faz explodir como num sonho, usa uma dimensão de liberdade vedada ao cientista, este sujeito a leis rígidas, reconhece na crítica racional orientada pela ideia da verdade, o fundamento do seu trabalho. Haverá só diferenças entre um trabalho científico e uma obra de arte?

Ninguém será cientista se não estiver interessado em compreender o mundo e alargar a extensão e precisão do conhecimento científico segundo os quais este foi ordenado, afirma Kuhn; a Arte, não é mera técnica de entretenimento dos sentidos, nem passatempo de fazer reproduções, alerta Arnheim. Com efeito o desejo expresso nas palavras de Fausto (Goethe), que eu conheça o que o Universo / preserva intacto no seu âmago, manifesta que o criador artístico acalenta o sonho, de qualquer grande cientista da Natureza. Naturalmente que um conhecimento que se adquire através das peças de Shakespeare distingue-se do que resulte da pesquisa de biólogos e químicos e poderá vir a originar medicamentos eficazes na cura de doenças. Ambos são úteis.


Se não é finalidade da Arte duplicar habilmente a Natureza ou distrair, qual é então o seu objectivo e de que modo concreto o realiza? Se o artista não imita a Natureza por que a observa tão atentamente?

Fernando Pessoa disse que não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores e Cézanne explicou por que razão contemplava a Natureza demoradamente. O tempo e a reflexão, afirma, modificam pouco a pouco a cena até que acabamos por compreender. Para o pintor e para o poeta a imagem na retina é apenas o começo de um fenómeno complexo. O lema de Leonardo Da Vinci, era Saber Ver. O grande cientista-artista, conferia tal poder às palavras “saber” e “ver”, que dizia: os olhos encerram a beleza do mundo inteiro...são os senhores da astronomia, assistem e presidem a todas as artes humanas...reinam sobre os vários campos da matemática... criaram a arquitectura e a perspectiva e...a divina arte da pintura.


Mas se é preciso saber ver para realizar a obra, quer seja literária, pictórica, escultórica ou musical, o mesmo se requer depois, para compreendê-la. Poderemos também dizer que não é bastante não ser cego para ver uma obra de arte. Se é verdade que as grandes obras de arte guardam ciosamente os seus segredos, sabe-se também que no horizonte de cada uma há sempre uma interpretação a pairar. António Damásio, declara que a partir dos sinais da retina revelando dimensões, cores, formas, movimentos, o cérebro constrói enredos, verdadeiros ou não, sobre esses objectos e acontecimentos. Será este fenómeno que a arte irá sublimar em ideias e em essências espirituais. A suprema questão da obra de arte, afirmou James Joyce no Ulisses, está em quão profunda é uma vida que ela gera. A pintura de Gustave Moreau é a pintura das ideias. A mais profunda poesia de Shelley, as palavras de Hamlet põem o nosso espírito em contacto com a sabedoria eterna.



Infelizmente a Arte é um universo pouco visitado pela maioria das pessoas e, por isso mesmo, com pouco peso na sua vida. Os motivos serão muitos e variados e o pouco que se faz para que esta situação se inverta, ou é em vão, ou poucos resultados se colhem. Entre os insensíveis à obra de arte não estarão os responsáveis pela degradação do ambiente e pela perturbação da harmonia entre os homens? Entre eles talvez estejam também, os que possuem uma certa espécie de ventura, que semeia secura por onde passa.

Para apreciar o que os museus exibem e as salas de concerto dão a ouvir, para saborear o que uma boa leitura oferece, para estremecer perante uma catedral gótica é preciso usar o lema de Leonardo, é preciso aprender a Saber Ver.

sábado, 14 de novembro de 2009

Notícias de Segovia


Queridos Filhos:

Visitar lugares que falam de épocas passadas,
vividas na intensidade de um abrasamento religioso,
artístico ou de domínio,
altera o fluir dos nossos pensamentos e
marca as nossas vidas.

Saudades.

sábado, 7 de novembro de 2009

Um Modo de Discorrer sobre o Espírito de Sintra


Incorpóreo mas real, simultaneamente inconfundível e vago, o espírito de cada lugar resultará de uma complexa teia que o Tempo, a Terra e o Homem engenhosamente vêm tecendo. Há lugares que têm espírito e Sintra é um deles.

Para sentir o espírito de um lugar ou reflectir sobre ele, não há como conhecer-lhe a história, isto é, saber como o local foi outrora. Incorpóreo mas real, simultaneamente inconfundível e vago, o espírito de cada lugar resultará de uma complexa teia que o Tempo, a Terra e o Homem, engenhosamente vêm tecendo.

O Tempo, labirinto de sentidos, é enigmático para o filósofo, aquilo que sabemos quando ninguém no-lo pergunta mas não sabemos quando o pretendemos explicar (1), simplificado por Fernando Pessoa, O presente é todo o passado e todo o futuro, simbiótico no 1º acto do Parsifal, Vê meu filho, aqui o espaço e o tempo se confundem, premonitório para Jesus de Nazaré, Não conheceis os sinais dos tempos?.

A Terra é a morada comum.

O Homem, é o ser da constante dedicação à busca do alimento, da sexualidade e do trabalho mas, se movido por irresistível vontade de indagar, descobre um universo de raros fenómenos, para lá do metabolismo e da reprodução. Vive então a aventura de contemplar, de pensar, de criar.

O Tempo, a Terra e o Homem serão os criadores do espírito de um lugar.

Pascal considera o género humano um mesmo homem que subsiste e aprende continuamente, qual processo interminável e laborioso que aplicado a Sintra foi gerador das preciosidades que herdámos e conservamos. São, entre outras, relíquias arqueológicas, monumentos, pinturas e literatura que o local inspirou. Alimentam o espírito do lugar, único nas singularidades que acumula, igual a todos na fragilidade que o marca. Século após século, o Homem domina-o, e dominando, mantém-lhe a essência ou adultera-a.






Durante séculos, em Sintra, a Natureza desempenhou o papel de protagonista. De que modo? Que peso teve nos empreendimentos realizados? Como a apresentam os textos antigos?

Quem deambular pela Serra encontrará conventos nos lugares mais escondidos da floresta. Os muros de ameias do antiquíssimo Castelo dos Mouros, sobranceiro à Vila, ajustam-se aos cumes dos montes e estendem-se por eles. Palácios, quintas solarengas e vivendas apalaçadas, erguem-se entre luxuriante vegetação. Casas rústicas e aldeias saloias, espalharam-se pelas várzeas férteis e de abundantes águas. Tudo fazia parte integrante da paisagem, através de um apropriado enquadramento no ambiente natural. Em Sintra o património natural e o património cultural, formaram uma unidade.

Se mesmo hoje não é fácil evocar Sintra sem lhe associar a Natureza, no passado essa particularidade assumiu formas caprichosas. Textos antiquíssimos, outros mais recentes, esboçam imagens de Sintra no pretérito. Alguns deixam adivinhar vivências, sentimentos e preferências. O texto que se segue do século X, do geógrafo árabe Al-Bacr, tem o seu valor acrescido pela escassez de referências anteriores à Nacionalidade. O autor que aprecia a fecundidade da terra e do mar e a salubridade do ar, informa: (Sintra) ... é uma das vilas que dependem de Lisboa no Andaluz, nas proximidades do mar. Está permanentemente mergulhada em bruma que se não dissipa. O seu clima é são e os habitantes duram longo tempo. Tem dois castelos de extrema solidez. A vila está a cerca de uma milha do mar (...) A região de Sintra é uma das regiões onde as maçãs são mais abundantes. Esses frutos atingem uma tal espessura que alguns chegam a ter quatro palmos de circunferência. Acontece o mesmo com as pêras. Na Serra de Sintra crescem violetas selvagens. Da costa vizinha extrai-se âmbar excelente.

Cada vez que se trata de pensar Sintra em épocas remotas, há um trecho que é citação certa. Trata-se da carta atribuída a Osberno, cruzado inglês que em 1147 participou na operação de conquista da cidade de Lisboa aos mouros. Testemunha ocular dos factos que descreve, o cruzado junta ainda outras informações. É aí que Sintra aparece e, curiosamente, entre o real e o mito

Fica-lhe próximo (de Lisboa) o castelo de Sintra,(...) no qual há uma fonte puríssima, cujas águas, a quem as bebe, dizem, abrandam a tosse e a tísica; por isso quando os naturais dali ouvem tossir alguém logo depreendem que é um estranho(...). Nos seus pastos as éguas reproduzem-se com admirável fecundidade por quanto só com aspirar as auras concebem do vento , e depois, sequiosas, têm coito com os cavalos. Desta forma se casam com o sopro das auras.

O cronista Damião de Góis também é citação indispensável. Nele, e noutras fontes, avaliamos como em Sintra a Natureza condicionou o evoluir histórico. Lugar de bosques, brumas e silêncios, espaço predilecto de caçadas, atraiu reis e, com eles, uma multidão. Procuravam sossego, diversão e as belezas do lugar. Longe do bulício de Lisboa, recuperavam energias e viviam a situação de apaziguamento, que a Natureza proporciona.

(D. Manuel vem) a Symtra ter o Verãm, por ser hú dos lugares da Europa mais frescos, & alegre para qualquer Rei, Principe & senhor poder nelle passar tal têpo,... hà nella muita caça de veado, & outras alimárias, & sobre tudo muitas...boas frutas (...) & as milhores fontes dagoa (...) às quaes cousas todas acrescenta(...) hos magnificos paços, que no mesmo lugar hos reis tem, para seu aposento,& dos que cõelles vam.(2)

No último quartel do século XVIII e em inícios do século XIX Sintra desempenhou um papel importantíssimo, desta vez na produção artística. Uma pleíade de artistas, encantou-se com as belezas da região, narrou-as, comentou-as e descreveu as emoções que acompanharam a contemplação dos lugares. Muitos, confessaram-se incapazes de descrever todos os encantos que presenciavam. Byron é um exemplo: Eis Sintra e o seu Éden resplandecente surgindo num labirinto multicolor de montes e vales. Ai de mim, que não sei pintar nem descrever metade sequer das maravilhas em que os meus olhos se deleitam. Nasceu assim, uma vasta e preciosa obra, que veio enriquecer, o espírito de Sintra.

É neste espaço que hoje vivemos. Aqui fazemos e desfazemos, limpamos e poluímos, aplacamos e avivamos, pranteamos e festejamos. O que ficar desta aventura merecerá os aplausos e as censuras dos vindouros. Eles julgarão o nosso tempo, tal como hoje avaliamos o passado e é importante que assim se faça, para que o fluir dos homens e das ideias, se molde à magia deste lugar e lhe respeite a essência.



Como muito bem disse o poeta o presente é todo o passado e todo o futuro. Em Sintra o passado infiltra-se no quotidiano de cada um. No mínimo, vive-se à sombra do castelo e na vizinhança dos monumentos. O presente também é futuro; há a nobre missão de acautelar e aumentar a herança que recebemos. De que modo? Vítor Serrão está cheio de sabedoria quando apresenta o seu ponto de vista : torna-se imperioso que o crescimento rime com qualidade, que novas construções rimem com interesse arquitectónico, que futuros arranjos rimem com enquadramento cenográfico.

Há lugares que têm espírito e Sintra é um deles.

(1) WITTGENSTEIN (1967). Philosophische Untersuchungen. Frankfurt A. M., p. 61

(2) VITOR SERRÃO (1989). Sintra. Editorial Presença, Lisboa, p.96

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Hoje há Festa, canta a Flor!


Ontem, o Ouricinho-Cacheiro, aluno do 8º ano, irmão da Gipsófila e do Peito-Ruivo, pediu-me que compusesse uns “versos” para que na aula sejam musicados. Saíram assim:


Corre o rio para o mar
Tosse a água, molha o ar
Brincam estelas, ri-se a Lua
Uiva o galgo pela rua

Olha a noite para baixo
Vê o melro a acordar
Olha Terra para cima
Sente o Sol quase a chegar

Dançam estrelas, corre a Lua
Dançam ondas lá no mar
Dançam melros andorinhas
Passa o rio vai a saltitar

Olha o céu para baixo
Olha a Terra para cima
Tudo canta tudo dança
Espreita o Sol lá na colina

Veio o Sol e foi-se a Lua
Vão crianças pela rua
Brilha a Terra tudo é cor
Hoje há festa canta a Flor

domingo, 1 de novembro de 2009

O Futuro é Biologica e Espiritualmente Aberto (IV)

4. ESPERANÇA

Procurem ver o mundo como na verdade ele pode ser visto,
como um lugar maravilhoso, que, à semelhança de um jardim,
podemos cultivar e tornar ainda melhor.
Procurem ter a humildade de um jardineiro experiente,
de um jardineiro que sabe que muitas das suas tentativas não irão ser bem sucedidas.
Karl Popper (1983)


Sendo a Noite povoada por um número incalculável de estrelas, algumas cem vezes maiores que o Sol e mil vezes mais quentes, por que motivo é ela negra? Desejando o ser humano viver uma vida pacífica, venturosa, feliz, por que razão novos conflitos nascem, equívocos multiplicam-se, e o alívio para o sofrimento tarda?


Sobre a Noite os cientistas explicam o fenómeno que atribuem à expansão do Universo: a luz das estrelas espalha-se num espaço cada vez mais vasto. A expansão é responsável pela existência da noite informa Reeves no livro Um Pouco Mais de Azul. Sobre o Homem, que tal como o Universo também está em “expansão,” paira um certo mistério. O conhecimento que procura na forma de interrogação permanente, não tem limites: vai à Lua, desce às profundezas oceânicas, dispõe de um império tecnológico, descobre o ADN chave do código genético, porém, há uma diferença abissal entre o seu desenvolvimento intelectual, e a quase estagnação, nalguns casos até retrocesso, das qualidades morais. Elas não acompanham o desenvolvimento intelectual. Há uma explicação para esta evidência? É possível que a situação se altere? Se do passado, chegam ecos de vidas, vividas de um modo tão exemplar, por que não sonhar com a multiplicação destes exemplos, de tal modo que a Paz reine sobre a Terra?

Kant, entre muitos outros, é um modelo notável e o episódio que se segue esclarecedor. O ano de 1804 ainda não tinha meia centena de dias. Naquele 12 de Fevereiro em Konigsberg, onde Immanuel Kant vivera os oitenta anos da sua vida, corre a notícia da morte do filósofo. Vivera os últimos anos da vida em completo recolhimento e por isso os amigos pensam que vai ter um funeral simples. Enganam-se. À medida que a notícia se espalha, aumenta o fluxo das pessoas que vão render-lhe a última homenagem e, no dia do funeral, um cortejo imenso acompanha a urna ao som de todos os carrilhões da cidade. Os relatos dos contemporâneos informam que jamais a cidade de Konigsberg vira cortejo fúnebre semelhante. Herder, que fora seu aluno, fala assim do grande pensador: valorizava tudo e reconduzia tudo a um conhecimento sem preconceitos da natureza , e ao valor moral dos homens. A história dos homens, dos povos e da natureza...eram as fontes que davam vida à sua lição e à sua conversação ...Encorajava e obrigava docemente a pensar por si. Popper afirma que os concidadãos de Kant acorreram ao funeral para lhe testemunharem o seu reconhecimento como mestre e proclamador dos direitos do homem, da igualdade perante a lei, do cosmopolitismo, da auto-libertação através do saber e, quiçá mais importante ainda da paz eterna sobre a Terra.

Viver ainda poderá ser uma aventura feliz, quando um dia, a Paz reinar entre os homens. Pablo Neruda (1904-1973) laureado com o prémio Nobel em 1971 crê que isso seja possível. No livro Confesso que vivi, escreve sobre o futuro:

Resta-me uma fé absoluta no destino humano, uma convicção cada vez mais consciente de que nos aproximamos de uma grande ternura. Escrevo sabendo que sobre as nossas cabeças, sobre todas as cabeças existe o perigo da bomba da catástrofe nuclear, que não deixaria ninguém nem nada sobre a Terra. Pois bem nem isso altera a minha esperança. Neste momento crítico, neste sobressalto de agonia sabemos que entrará a luz definitiva pelos olhos entreabertos. Entender-nos-emos todos. Progrediremos juntos. Esta esperança é irrevogável.

No reino do amor há muitas moradas.