sábado, 19 de dezembro de 2009

Querido Pai do Natal, Sereníssima Alegria

Quão admirado sois no Planeta Terra!

Como se alegram e pulam de prazer as crianças quando a hora da vossa visita se aproxima!

Como cantam maravilhas os que são agraciados por vós!

Também eu faço parte desse coro sinfónico porém, não poucas vezes, interrogo-me: Como lidará VOSSA SERENÍSSIMA ALEGRIA, com o “caos” que representa o conjunto dos pedidos que recebe? Que estratégias usará para localizar os diversos lugares que visita? Perdoe-me a imagem, mas comparo-o a um bibliotecário que tem milhões de livros para arrumar em quilómetros de prateleiras.

O pedido que hoje vos dirijo é pouco ortodoxo, não consta de um mimo para esta ou aquela criança, para este ou aquele amigo, nem mesmo para mim. É um convite que lhe dirijo e, se VOSSA SERENÍSSIMA ALEGRIA aceitar, honrará esta esplendorosa Península que habito e quase se solta do Continente que a segura. Em primeiro lugar considere-a seu jardim agora “pinto-a” com algumas, palavras:


O ambiente natural é muito belo. Quando o Sol mergulha no azul irreal e líquido dos mares e nas águas rumorejantes dos rios, quando o Sol incide sobre as colinas, prados, e sobre montanhas que orgulhosamente se exibem pela paisagem, quando as flores exalam e a chilreada das aves enche os ares, temos um luxo de cores de sons e de cheiros. A Beleza estoira nestes 598 000 quilómetros quadrados de superfície, habitados por cerca de 55 000 000 pessoas, gente boa, empreendedora, aventureira, sonhadora. É certo que também há os que têm comportamentos dissonantes e sem nesga de lucidez, mas não são assim tantos. Envio as coordenadas deste maravilhoso pedaço de terra para facilitar a sua localização: 43º 48’ - 36º Lat. N e 9º 30’ Long. W – 3º 19’ Long. E.

Infelizmente nem tudo corre bem por cá. No Verão, quando o Sol abrasa, saltam fogos por aqui e por ali. Este abominável braseiro, é um verdadeiro inferno. Nos milhares e milhares de hectares de terra queimada sente-se o suspiro da Natureza, o seu lamento, até o Sol empalidece. Onde está a frondosa árvore? Que resta daquela inundação de verdura? Calou-se o canto do melro e o gaio também já não se ouve nem o rouxinol.


Sabemos que uma Terra sem fogos depende de todos, sabemos que em zonas florestais é proibido fumar ou fazer lume de qualquer tipo, lançar foguetes ou balões de mecha acesa, realizar queimadas para renovação de pastagens, queimar sobrantes agrícolas ou florestais, porém, a imprudência e a malvadez de alguns são fatais. Para acabar com o flagelo criámos a ASSOCIAÇÃO DOS PROMOTORES PARA UMA PENÍNSULA SEM FOGOS. Batemo-nos por este elevado ideal que certamente louvará e, certos disso, ousamos convidar VOSSA SERENÍSSIMA ALEGRIA para Presidente honorário da nossa ASSOCIAÇÃO.

Mas não é tudo. Outras preocupações se juntam a esta: O Lince-ibérico e a Águia-imperial encontram-se numa situação de pré-extinção. Para inverter este declínio há um Plano de Acção que visa contribuir para assegurar a viabilidade das duas espécies. Neste território.

Para o Lince-ibérico há um programa de reprodução em cativeiro e de criação de condições adequadas em habitats potenciais.


Para a Águia-imperial, uma das espécies de rapinas mais raras do mundo, há um programa de monitorização de casais conhecidos, a prospecção de novos casais e de diluição de ameaças que se apresentem ao longo da época de reprodução. Com estas e outras medidas espera-se que em breve muitos lincezinhos e águiazinhas venham a nascer.

E eis que chegou o momento certo para fazer o novo convite: Convido VOSSA SERENÍSSIMA ALEGRIA para padrinho das crias que nascerem.

Desejo que receba muitos pedidos que beneficiem grandes comunidades.

Sua admiradora,
Filha do Luar

domingo, 13 de dezembro de 2009

Jesus de Nazaré provavelmente Poeta (II)



Jesus entre os Poetas

Se Jesus de Nazaré deu forma escrita ao sistema moral que divulgou em ministério itinerante, se na arquitectura de um poema construiu um Reino de Justiça, Beleza como a humanidade nunca conheceu, se deu contornos poéticos a profecias e sonhos, se teceu cantos de alegria e louvor às maravilhas do mundo natural, nada se conservou ou, tudo ainda está por descobrir. Os Manuscritos do Mar Morto, documentos preciosos que religiosos judeus esconderam nas grutas calcárias de Qumran, situadas entre Jerusalém e o Mar Morto, só em 1947 foram encontrados. Uma década de escavações proporcionou a descoberta de mais de 800 papiros e fragmentos de pergaminho, escondidos durante cerca de dezanove séculos.


Porém, para descobrir um poeta em Jesus de Nazaré, importa menos valorizar a fecundidade conotativa das metáforas, das valências simbólicas, dos duplos sentidos, das significações plurais que brotam dos seus ensinamentos, do que considerar a preocupação que manifesta pelos desprotegidos, a coragem que mostra quando aperfeiçoa o património espiritual que recebeu, a singularidade das atitudes que tomou. Deste imenso universo, sobressai a simplicidade na escolha dos discípulos mais íntimos. Dispensando currículos e entrevistas, passa, observa, escolhe e diz ao eleito: Deixa tudo vem e segue-me. A sugestão que dá a quem oferece banquetes é ousada: convida os pobres, os aleijados os cegos, os mancos. O conselho dirigido ao jovem cheio de qualidades que deseja ser ainda mais puro, é irrealizável: Vende tudo o que tens, dá aos pobres e segue-me. A lei que acrescenta ao decálogo e que ainda está por cumprir: Amai-vos uns aos outros.


Ora sendo a poesia uma longa aventura da imaginação do Homem qual é o seu valor absoluto? Onde reside grandeza de um poema? Que pensam os poetas do engenho que possuem? Neruda, no livro CONFESSO QUE VIVI escrito mesmo no resto dos seus dias, informa que o amor e a Natureza são os alicerces da poesia que escreveu e acrescenta: Coube-me sofrer e lutar, amar e cantar. Tocaram-me na partilha do mundo triunfo e derrota, provei o gosto do pão e do sangue. Que mais quer um poeta? Depois, narra curioso episódio, que elege como o maior prémio obtido em toda a sua vida, maior que o Prémio Nobel que recebeu em 1971. Passa-se no vale de Lota, porto do Chile central. Um mineiro de face alterada pela dureza do trabalho, olhos avermelhados da poeira, sai de uma cova aberta na escarpa como se emergisse do inferno, vê o poeta, estende-lhe a mão calejada e diz: Conhecia-te desde há muito tempo irmão. Neruda, comovido, comenta as palavras e o gesto do mineiro: o vento e a noite e as estrelas do Chile disseram-lhe muitas vezes: Não estás sozinho; há um poeta que pensa nas tuas dores. O poeta sabe com quantas dores se tece a vida humana.


Quais serão os alicerces da oralidade do Mestre Nazareno? Um dia, deslumbrado, olha os lírios do campo, outro dia diz para um conjunto de rostos onde a miséria se desenha: Olhai os lírios do campo como eles crescem; não trabalham nem fiam…nem mesmo Salomão em toda a sua vida se vestiu como qualquer deles. Um dia vai pelos caminhos, olha as aves que passam velo-zes e observa os pássaros que chilreiam nas árvores, outro dia rodeado de gente envolta numa aura de tristeza, gente que se resigna a viver sem sonhos, diz-lhes: Olhai para as aves do céu, não semeiam não ceifam, não juntam em celeiros e Deus as alimenta. Aos oprimidos, aos pobres, aos pacificadores, aos misericordiosos, aos que têm fome e sede de Justiça, promete que um dia serão fartos, consolados, serão chamados filhos de Deus, viverão num Reino, onde o cordeiro convive com o lobo. Quem o via e ouvia, levava-o na memória.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Jesus de Nazaré provavelmente Poeta (I)



Um Caminho de Palavras

Antiquíssimos tempos decorrem, e já a palavra anima o panorama mental do Homem que, entre tímido e ousado, explora o cenário natural onde desenvolve uma experiência, a de viver. Percorre os caminhos que se oferecem para o desconhecido, olha o alto e olha ao longe, a luz excita-o, a cor surpreende-o, está numa aventura e não sabe porquê. Entre a diversidade das formas e dos seres - montanhas, planícies, rios, mares, desertos, mil maneiras de ser árvore e de ser flor, mil maneiras de ser ave e de ser peixe - sente-se um estranho. Tudo freme, tudo muda, tudo brilha à sua volta. A fantasia está prestes a explodir como num sonho, é o mito a germinar. Se, como Popper afirma, poesia e ciência nasceram do mito, então este germina na cabeça ou no coração do antiquíssimo Homem?



Forte, expressivo, o pensamento enreda-se nos mistérios cósmicos e esboça o perfil do sagrado. Algumas especulações atribuem à palavra um poder criador. No Livro do Génesis, Deus cria os seres nomeando-os. A magia acontece através da voz de Deus que do nada faz tudo. Disse Deus: Haja luz. E houve luz. … Disse Deus: Haja luminares na expansão dos céus … E assim foi … Disse deus: Produza a terra alma vivente…

A palavra, obra-prima da singularidade humana, é insubstituível nas diversas funções da rotina quotidiana, é preciosidade para o poeta que com ela tece jubilosos ou doridos versos por onde passam todas as vozes da humanidade, é valor que o cientista utiliza para ir revelando a história deste Universo em expansão cuja estrutura ainda não acabou de descobrir.

O poeta Jorge Luís Borges adverte: a língua não é, como o dicionário nos leva a crer, invenção de académicos ou filólogos. Pelo contrário, foi desenvolvida ao longo do tempo, durante muito tempo por camponeses, pescadores, caçadores, cavaleiros. Não veio das bibliotecas, veio dos campos, do mar, dos rios, da noite, da madrugada. Há palavras que transportam o peso de uma antiquíssima história e por isso conservam-se em perpétua floração. BELEZA, JUSTIÇA, DEUS são algumas. As suas fronteiras tocam-se, cruzam-se, invadem-se. O oráculo de Delfos pronunciando-se sobre critérios de avaliação da BELEZA afirma: O mais justo é o mais belo; Jesus de Nazaré, certo dia no Templo diz: Eu e o Pai somos um; o poeta José Régio, talvez inspirado nestas palavras do Mestre, ousa afirmar: Deus, sou eu levado à perfeição. Falar de Deus sempre foi e será, uma audácia poética.


A mais simples palavra sai sublimada da pena do poeta: Os olhos da minha amada brilham mais que as estrelas, escreveu Shakespeare; eu sou a água viva, quem beber desta água não mais terá sede, disse Jesus de Nazaré. Que pensará o poeta desta matéria-prima que usa e ajusta ao pensamento?

Eugénio de Andrade atribui-lhe violência e fragilidade, São como um cristal, as palavras. / Algumas, um punhal, um incêndio. / Outras, / orvalho apenas. Neruda entusiasma-se: são as palavras que cantam que sobem e descem. Prosterno-me diante delas … Amo-as, abraço-as, persigo-as … Brilham como pedras de cores, saltam como irisados peixes, são tão belas quero pô-las todas no meu poema … Tudo está na palavra … Elas têm sombra, transparência, têm tudo quanto se lhes foi agregando de tanto rolar… de tanto transmigrar de pátria de tanto serem raízes … Jesus de Nazaré compara a palavra à semente que o lavrador lança à terra. Certo dia, estando Ele junto ao Mar da Galileia, reúne-se tamanho grupo à sua volta, que decide entrar num barquinho. O mar ali, o céu alheio e distante e um grupo de gente simples, alguns protagonistas de tristes histórias, olham a jovem figura do Mestre e ouvem estas palavras: saiu o semeador a semear; e aconteceu que, semeando ele, uma parte da semente caiu junto do caminho e vieram as aves do céu e a comeram; e outra caiu sobre os pedregais … mas, saindo o Sol, queimou-se, outra caiu entre espinhos e crescendo a sufocaram e não deu fruto. E outra caiu em boa terra e deu fruto que vingou e cresceu. Órfãos de sonhos, olhos húmidos e tristes, não entendem, o que o Mestre diz, perdem-se no labiríntico discurso. Porém, olhá-lo e ser olhado ou olhada por Ele, isso lhes basta. Era tão jovem ainda! Até os discípulos mais íntimos perguntam: Que parábola é esta? O Mestre responde-lhes: A semente é a palavra.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Francisco Bugalho, o poeta que pintou a Natureza



Francisco Bugalho, o poeta a quem José Régio chamou o pintor da Natureza, recorre a uma expressiva paleta de sensações com que ilustra a Natureza, transcendendo os sentidos pela sua faculdade de sonhar, contemplar, cismar e abandonar-se.

1- A poesia é um domínio singular, onde a Natureza é protagonista e a experiência humana princípio activo. Das percepções sensoriais às ideias mais rarefeitas, atitudes simples de laborar e amar, são sementes de arte para o poeta, por cuja compreensão passam os fenómenos e as forças que os animam. Mas Herbert Read afirma que “tem sido sempre função da arte, dilatar a mente um pouco para além dos limites da compreensão. Essa distância para além, pode ser espiritual ou transcendental, ou simplesmente fantástica, algures tem de passar além dos limites do racional”.

Assim, numa sociedade organizada segundo a racionalidade dos meios, que lugar ocupará a poesia? E como a substância poética contém um universo de valores – estéticos, intelectuais, éticos, ambientais … - que tipo de relação se estabelece entre poeta e leitor?

Francisco Bugalho, a quem José Régio chamou “pintor da Natureza”, encontrou no real um filão de maravilhoso. A Natureza que está na raiz da sua inspiração resplandece na obra deste poeta. Em cada poema percebe-se um movimento circular em torno da realidade, seja uma árvore, serra, fim-de-dia ou dois meninos. O movimento evolui e consuma-se quando, poeta e real, encontram a relação justa. O poema Montado Velho, entre muitos outros, é um exemplo bem significativo.

Começa assim:

Meu triste montado velho
Que paz tem quem te procura
E, em ti, vem achar o espelho
De uma vida sem doçura,
Mas livre de enganos vãos ! …


Francisco Bugalho terá deambulado pelo labirinto rumorejante das árvores do montado e a par dos equilíbrios de alma, que o poema deixa adivinhar, revitaliza a imaginação. Ora espiritualizando o real, ora concedendo concretismo a fenómenos físicos e psicológicos o poema continua:

Troncos rugosos, mas sãos,
Ásperos, sim, mas generosos,
Todos, na desgraça, irmãos,
Dos maus Invernos ventosos
E dos verões, sem pinga d’água.

Montado, que estranha mágua
Te confrange e te redime !
A tua visão afago-a .
És bom cenário pra um crime …
E pra milagres também.

O Poeta passa depois a informar o montado da existência de outros espaços, com outras cores e brilhos e outros sons.

Montado, além, mais pra além,
Há céus azuis e há searas.
E brandas águas que têm
O brilho de pedras raras,
E não há só solidão ! …

Solidão que experimenta quem está domiciliado num mundo à parte? Os atractivos enumerados, não seduzem o poeta, que permanece com o montado. Realiza-se a unidade entre ambos.

Mas essa tua canção
- solução d’alma que anseia –
Também a meu coração,
Furtivamente se enleia.
E aqui me fico contigo.

Sem ternura, nem doçura;
Mas longe do mundo vão,
Meu velho montado amigo ! …


É sempre preciso um poeta. Ele conduz-nos a um mundo mais vasto, mais ardente, mais belo, onde as dissonâncias se resolvem em harmonias.

2- Em 1960 José Régio escrevia assim: “Pela simples vivacidade dos sentidos, ainda Francisco Bugalho não seria o poeta que é; sendo já, sem nenhum desperdício de palavras, um belo pintor da Natureza … Os conhecidos sentidos … multiplica-os, transcende-os o poeta pela sua faculdade de sonhar, contemplar, cismar, abandonar-se. Eis que a sua comunicação com a Natureza vai muito além, assim, do primeiro contacto e penetra-a até aos seios do mistério …”. E é destas faculdades de “sonhar”, “contemplar” e de “cismar”, referidas por José Régio que nasce a obra do poeta, a importância do seu pensamento.

Se cada arte tem o seu próprio público, cujo comportamento e pensamento influencia, que acção escreverá a poesia ?

Diz-se que a poesia proporciona prazer. Porém, não existe só, para que os leitores alcancem a plenitude dos bem aventurados.

Na obra de Francisco Bugalho, o tema da relação entre os seres, aparece em diversos poemas. Num tempo em que os abusos inflingidos sobre a fauna e a flora são frequentes e por vezes irreparáveis, é útil conhecer outras formas de relacionamento. O poema Humildade demonstra que a vida quer esteja no Homem, nos animais, ou nas plantas é sempre a vida.

HUMILDADE

As águas beijei,
As nuvens olhei,
As árvores cantei,
Na sua beleza.

Os bichos amei,
Na sua bruteza,
Na sua pureza,
De forças sem lei.

E porque os amei
E os acompanhei,
Não me senti Rei
Na Mãe-Natureza.

Através de diversos encaminhamentos, e a poesia será um dos caminhos, nasce o desejo de estabelecer um modo melhor de regulamento, das relações entre o Homem e o meio natural.

Francisco Bugalho, o poeta “pintor da Natureza” terá vivido na perspectiva da eternidade. O poema A uma Árvore, celebra o triunfo da vida. Uma árvore que o poeta plantou, acompanha o ritmo das estações, regenera-se ciclicamente, ouve os sonhos dos filhos do poeta e eterniza-o.


A UMA ÁRVORE

Árvore
Quando eu morrer hás-de ficar.
Hás-de ver o passar doutras Estações.
Hás-de ouvir as canções
De uns outros ninhos, noutras Primaveras.
Junto de ti, meu filho há-de sonhar
Minhas antigas, fúlgidas quimeras.

Árvore
Quando eu morrer, hás-de falar
De mim, que te plantei.
E, em cada ramo novo que brotar,
Serás um gesto meu a perdurar:

- Por ti, não morrerei

Além do mais, a obra que Francisco Bugalho deixou, é algo de si mesmo, que está vivo.

- Bugalho, F. (1998). Poesia. 2ª edição. Editora LG, Lisboa.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

O Sol de Todos



Os olhos da minha amada não se comparam com o Sol
Shakespeare

A Natureza exprime sempre algo que a transcende, afirma Mircea Eliade e, deste facto, tanto pode resultar uma teoria científica, como uma sinfonia, um poema ou uma pintura. O avanço da Ciência, porém, trouxe alterações a vários níveis, na relação do Homem com a Natureza. Assim, conhecendo-se cientificamente um fenómeno natural, o pôr-do-Sol por exemplo, será ainda possível, continuar a olhá-lo com o mesmo estremecimento de alma que proporcionava antes de ter chegado a explicação da Ciência? Este poema de Baudelaire sobre os ocasos, proporcionará o mesmo aprazimento antes e depois da aquisição de conhecimentos sobre o fenómeno?

Os sóis-poentes
Revestem os campos
Os canais, a cidade inteira
De jacinto e ouro
O mundo adormece
Numa cálida luz.


O testemunho de certo cientista, sobre a questão dos efeitos da Ciência na relação do ser humano com a Natureza, interessa particularmente. É ele Hubert Reeves, conselheiro científico da NASA e doutorado em astrofísica nuclear. Conta Reeves que já na juventude vibrava perante um mar inflamado pelo Sol poente. Certo dia, porém, conhecia já os estudos do físico escocês Maxwell, estava diante do oceano sereno gloriosamente colorido pelo Sol, quando escutou uma voz interior que lhe dizia: Estes desenhos, estas formas, estas tonalidades cambiantes são as soluções matemáticas das equações de Maxwell, perfeitamente previsíveis e calculáveis. Nada mais do que isso ...No meu céu interior erguiam-se as equações de Maxwell, frias, inexoráveis. A sua luz crua abolira, assim me parecia, a frágil magia do céu rosa e do mar cintilante. Esta expressão, assim me parecia, que Reeves intercala, anuncia um desfecho simpático. Com efeito, no livro Malicorne, reflexões de um observador da Natureza, Reeves percorre uma trama compacta de caminhos, e o leitor acaba por concluir que o cientista encontrou explicações suficientes para continuar a deleitar-se com um pôr-do-Sol. De certo modo, este episódio, lembra a célebre resposta de Diógenes, dada a Alexandre o Grande, quando este, preocupado com a vida pobre que o filósofo levava, pergunta-lhe o que precisa para viver com mais conforto. A resposta, sobejamente conhecida não tardou: não me tires o meu Sol.

D. Quixote confortava Sancho dizendo-lhe que o Sol nasce para os maus e para os bons. Cervantes tinha razão, o Sol contempla todos, mas cada um recebe-o de seu modo e consoante as circunstâncias. Um pintor, um poeta e aquele profeta que ensinou a fazer da vida uma obra de arte, exemplificam. A luminosidade da Natureza, as variações de luz na sua relação com as formas surpreendiam os olhos de Monet que pintou cerca de quarenta “catedrais de Ruão”. Sempre a mesma fachada, sem céu nem solo, o pintor registou o efeito das variações da luz. Há a catedral de Ruão com Sol intenso, com sol, etc., etc. O poeta, supremo artista da palavra, utiliza-a ao serviço da fraternidade. Escreveu Pessoa: Bendito seja o mesmo Sol de outras terras que faz mais irmãos todos os homens. Jesus de Nazaré surpreende porque disse: Os justos resplandecerão como o Sol.

O Homem é inventivo, capaz de encontrar a saída de todos os labirintos, mas desenvolveu a inteligência mais rapidamente que as qualidades morais. As religiões apesar das boas intenções que as movem conduziram à intolerância e ao fanatismo, a Arte poderá ser um caminho para chegar à fraternidade ,à justiça, ao Amor. O Sol faz da Terra o nosso País.