sábado, 19 de dezembro de 2009

Querido Pai do Natal, Sereníssima Alegria

Quão admirado sois no Planeta Terra!

Como se alegram e pulam de prazer as crianças quando a hora da vossa visita se aproxima!

Como cantam maravilhas os que são agraciados por vós!

Também eu faço parte desse coro sinfónico porém, não poucas vezes, interrogo-me: Como lidará VOSSA SERENÍSSIMA ALEGRIA, com o “caos” que representa o conjunto dos pedidos que recebe? Que estratégias usará para localizar os diversos lugares que visita? Perdoe-me a imagem, mas comparo-o a um bibliotecário que tem milhões de livros para arrumar em quilómetros de prateleiras.

O pedido que hoje vos dirijo é pouco ortodoxo, não consta de um mimo para esta ou aquela criança, para este ou aquele amigo, nem mesmo para mim. É um convite que lhe dirijo e, se VOSSA SERENÍSSIMA ALEGRIA aceitar, honrará esta esplendorosa Península que habito e quase se solta do Continente que a segura. Em primeiro lugar considere-a seu jardim agora “pinto-a” com algumas, palavras:


O ambiente natural é muito belo. Quando o Sol mergulha no azul irreal e líquido dos mares e nas águas rumorejantes dos rios, quando o Sol incide sobre as colinas, prados, e sobre montanhas que orgulhosamente se exibem pela paisagem, quando as flores exalam e a chilreada das aves enche os ares, temos um luxo de cores de sons e de cheiros. A Beleza estoira nestes 598 000 quilómetros quadrados de superfície, habitados por cerca de 55 000 000 pessoas, gente boa, empreendedora, aventureira, sonhadora. É certo que também há os que têm comportamentos dissonantes e sem nesga de lucidez, mas não são assim tantos. Envio as coordenadas deste maravilhoso pedaço de terra para facilitar a sua localização: 43º 48’ - 36º Lat. N e 9º 30’ Long. W – 3º 19’ Long. E.

Infelizmente nem tudo corre bem por cá. No Verão, quando o Sol abrasa, saltam fogos por aqui e por ali. Este abominável braseiro, é um verdadeiro inferno. Nos milhares e milhares de hectares de terra queimada sente-se o suspiro da Natureza, o seu lamento, até o Sol empalidece. Onde está a frondosa árvore? Que resta daquela inundação de verdura? Calou-se o canto do melro e o gaio também já não se ouve nem o rouxinol.


Sabemos que uma Terra sem fogos depende de todos, sabemos que em zonas florestais é proibido fumar ou fazer lume de qualquer tipo, lançar foguetes ou balões de mecha acesa, realizar queimadas para renovação de pastagens, queimar sobrantes agrícolas ou florestais, porém, a imprudência e a malvadez de alguns são fatais. Para acabar com o flagelo criámos a ASSOCIAÇÃO DOS PROMOTORES PARA UMA PENÍNSULA SEM FOGOS. Batemo-nos por este elevado ideal que certamente louvará e, certos disso, ousamos convidar VOSSA SERENÍSSIMA ALEGRIA para Presidente honorário da nossa ASSOCIAÇÃO.

Mas não é tudo. Outras preocupações se juntam a esta: O Lince-ibérico e a Águia-imperial encontram-se numa situação de pré-extinção. Para inverter este declínio há um Plano de Acção que visa contribuir para assegurar a viabilidade das duas espécies. Neste território.

Para o Lince-ibérico há um programa de reprodução em cativeiro e de criação de condições adequadas em habitats potenciais.


Para a Águia-imperial, uma das espécies de rapinas mais raras do mundo, há um programa de monitorização de casais conhecidos, a prospecção de novos casais e de diluição de ameaças que se apresentem ao longo da época de reprodução. Com estas e outras medidas espera-se que em breve muitos lincezinhos e águiazinhas venham a nascer.

E eis que chegou o momento certo para fazer o novo convite: Convido VOSSA SERENÍSSIMA ALEGRIA para padrinho das crias que nascerem.

Desejo que receba muitos pedidos que beneficiem grandes comunidades.

Sua admiradora,
Filha do Luar

domingo, 13 de dezembro de 2009

Jesus de Nazaré provavelmente Poeta (II)



Jesus entre os Poetas

Se Jesus de Nazaré deu forma escrita ao sistema moral que divulgou em ministério itinerante, se na arquitectura de um poema construiu um Reino de Justiça, Beleza como a humanidade nunca conheceu, se deu contornos poéticos a profecias e sonhos, se teceu cantos de alegria e louvor às maravilhas do mundo natural, nada se conservou ou, tudo ainda está por descobrir. Os Manuscritos do Mar Morto, documentos preciosos que religiosos judeus esconderam nas grutas calcárias de Qumran, situadas entre Jerusalém e o Mar Morto, só em 1947 foram encontrados. Uma década de escavações proporcionou a descoberta de mais de 800 papiros e fragmentos de pergaminho, escondidos durante cerca de dezanove séculos.


Porém, para descobrir um poeta em Jesus de Nazaré, importa menos valorizar a fecundidade conotativa das metáforas, das valências simbólicas, dos duplos sentidos, das significações plurais que brotam dos seus ensinamentos, do que considerar a preocupação que manifesta pelos desprotegidos, a coragem que mostra quando aperfeiçoa o património espiritual que recebeu, a singularidade das atitudes que tomou. Deste imenso universo, sobressai a simplicidade na escolha dos discípulos mais íntimos. Dispensando currículos e entrevistas, passa, observa, escolhe e diz ao eleito: Deixa tudo vem e segue-me. A sugestão que dá a quem oferece banquetes é ousada: convida os pobres, os aleijados os cegos, os mancos. O conselho dirigido ao jovem cheio de qualidades que deseja ser ainda mais puro, é irrealizável: Vende tudo o que tens, dá aos pobres e segue-me. A lei que acrescenta ao decálogo e que ainda está por cumprir: Amai-vos uns aos outros.


Ora sendo a poesia uma longa aventura da imaginação do Homem qual é o seu valor absoluto? Onde reside grandeza de um poema? Que pensam os poetas do engenho que possuem? Neruda, no livro CONFESSO QUE VIVI escrito mesmo no resto dos seus dias, informa que o amor e a Natureza são os alicerces da poesia que escreveu e acrescenta: Coube-me sofrer e lutar, amar e cantar. Tocaram-me na partilha do mundo triunfo e derrota, provei o gosto do pão e do sangue. Que mais quer um poeta? Depois, narra curioso episódio, que elege como o maior prémio obtido em toda a sua vida, maior que o Prémio Nobel que recebeu em 1971. Passa-se no vale de Lota, porto do Chile central. Um mineiro de face alterada pela dureza do trabalho, olhos avermelhados da poeira, sai de uma cova aberta na escarpa como se emergisse do inferno, vê o poeta, estende-lhe a mão calejada e diz: Conhecia-te desde há muito tempo irmão. Neruda, comovido, comenta as palavras e o gesto do mineiro: o vento e a noite e as estrelas do Chile disseram-lhe muitas vezes: Não estás sozinho; há um poeta que pensa nas tuas dores. O poeta sabe com quantas dores se tece a vida humana.


Quais serão os alicerces da oralidade do Mestre Nazareno? Um dia, deslumbrado, olha os lírios do campo, outro dia diz para um conjunto de rostos onde a miséria se desenha: Olhai os lírios do campo como eles crescem; não trabalham nem fiam…nem mesmo Salomão em toda a sua vida se vestiu como qualquer deles. Um dia vai pelos caminhos, olha as aves que passam velo-zes e observa os pássaros que chilreiam nas árvores, outro dia rodeado de gente envolta numa aura de tristeza, gente que se resigna a viver sem sonhos, diz-lhes: Olhai para as aves do céu, não semeiam não ceifam, não juntam em celeiros e Deus as alimenta. Aos oprimidos, aos pobres, aos pacificadores, aos misericordiosos, aos que têm fome e sede de Justiça, promete que um dia serão fartos, consolados, serão chamados filhos de Deus, viverão num Reino, onde o cordeiro convive com o lobo. Quem o via e ouvia, levava-o na memória.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Jesus de Nazaré provavelmente Poeta (I)



Um Caminho de Palavras

Antiquíssimos tempos decorrem, e já a palavra anima o panorama mental do Homem que, entre tímido e ousado, explora o cenário natural onde desenvolve uma experiência, a de viver. Percorre os caminhos que se oferecem para o desconhecido, olha o alto e olha ao longe, a luz excita-o, a cor surpreende-o, está numa aventura e não sabe porquê. Entre a diversidade das formas e dos seres - montanhas, planícies, rios, mares, desertos, mil maneiras de ser árvore e de ser flor, mil maneiras de ser ave e de ser peixe - sente-se um estranho. Tudo freme, tudo muda, tudo brilha à sua volta. A fantasia está prestes a explodir como num sonho, é o mito a germinar. Se, como Popper afirma, poesia e ciência nasceram do mito, então este germina na cabeça ou no coração do antiquíssimo Homem?



Forte, expressivo, o pensamento enreda-se nos mistérios cósmicos e esboça o perfil do sagrado. Algumas especulações atribuem à palavra um poder criador. No Livro do Génesis, Deus cria os seres nomeando-os. A magia acontece através da voz de Deus que do nada faz tudo. Disse Deus: Haja luz. E houve luz. … Disse Deus: Haja luminares na expansão dos céus … E assim foi … Disse deus: Produza a terra alma vivente…

A palavra, obra-prima da singularidade humana, é insubstituível nas diversas funções da rotina quotidiana, é preciosidade para o poeta que com ela tece jubilosos ou doridos versos por onde passam todas as vozes da humanidade, é valor que o cientista utiliza para ir revelando a história deste Universo em expansão cuja estrutura ainda não acabou de descobrir.

O poeta Jorge Luís Borges adverte: a língua não é, como o dicionário nos leva a crer, invenção de académicos ou filólogos. Pelo contrário, foi desenvolvida ao longo do tempo, durante muito tempo por camponeses, pescadores, caçadores, cavaleiros. Não veio das bibliotecas, veio dos campos, do mar, dos rios, da noite, da madrugada. Há palavras que transportam o peso de uma antiquíssima história e por isso conservam-se em perpétua floração. BELEZA, JUSTIÇA, DEUS são algumas. As suas fronteiras tocam-se, cruzam-se, invadem-se. O oráculo de Delfos pronunciando-se sobre critérios de avaliação da BELEZA afirma: O mais justo é o mais belo; Jesus de Nazaré, certo dia no Templo diz: Eu e o Pai somos um; o poeta José Régio, talvez inspirado nestas palavras do Mestre, ousa afirmar: Deus, sou eu levado à perfeição. Falar de Deus sempre foi e será, uma audácia poética.


A mais simples palavra sai sublimada da pena do poeta: Os olhos da minha amada brilham mais que as estrelas, escreveu Shakespeare; eu sou a água viva, quem beber desta água não mais terá sede, disse Jesus de Nazaré. Que pensará o poeta desta matéria-prima que usa e ajusta ao pensamento?

Eugénio de Andrade atribui-lhe violência e fragilidade, São como um cristal, as palavras. / Algumas, um punhal, um incêndio. / Outras, / orvalho apenas. Neruda entusiasma-se: são as palavras que cantam que sobem e descem. Prosterno-me diante delas … Amo-as, abraço-as, persigo-as … Brilham como pedras de cores, saltam como irisados peixes, são tão belas quero pô-las todas no meu poema … Tudo está na palavra … Elas têm sombra, transparência, têm tudo quanto se lhes foi agregando de tanto rolar… de tanto transmigrar de pátria de tanto serem raízes … Jesus de Nazaré compara a palavra à semente que o lavrador lança à terra. Certo dia, estando Ele junto ao Mar da Galileia, reúne-se tamanho grupo à sua volta, que decide entrar num barquinho. O mar ali, o céu alheio e distante e um grupo de gente simples, alguns protagonistas de tristes histórias, olham a jovem figura do Mestre e ouvem estas palavras: saiu o semeador a semear; e aconteceu que, semeando ele, uma parte da semente caiu junto do caminho e vieram as aves do céu e a comeram; e outra caiu sobre os pedregais … mas, saindo o Sol, queimou-se, outra caiu entre espinhos e crescendo a sufocaram e não deu fruto. E outra caiu em boa terra e deu fruto que vingou e cresceu. Órfãos de sonhos, olhos húmidos e tristes, não entendem, o que o Mestre diz, perdem-se no labiríntico discurso. Porém, olhá-lo e ser olhado ou olhada por Ele, isso lhes basta. Era tão jovem ainda! Até os discípulos mais íntimos perguntam: Que parábola é esta? O Mestre responde-lhes: A semente é a palavra.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Francisco Bugalho, o poeta que pintou a Natureza



Francisco Bugalho, o poeta a quem José Régio chamou o pintor da Natureza, recorre a uma expressiva paleta de sensações com que ilustra a Natureza, transcendendo os sentidos pela sua faculdade de sonhar, contemplar, cismar e abandonar-se.

1- A poesia é um domínio singular, onde a Natureza é protagonista e a experiência humana princípio activo. Das percepções sensoriais às ideias mais rarefeitas, atitudes simples de laborar e amar, são sementes de arte para o poeta, por cuja compreensão passam os fenómenos e as forças que os animam. Mas Herbert Read afirma que “tem sido sempre função da arte, dilatar a mente um pouco para além dos limites da compreensão. Essa distância para além, pode ser espiritual ou transcendental, ou simplesmente fantástica, algures tem de passar além dos limites do racional”.

Assim, numa sociedade organizada segundo a racionalidade dos meios, que lugar ocupará a poesia? E como a substância poética contém um universo de valores – estéticos, intelectuais, éticos, ambientais … - que tipo de relação se estabelece entre poeta e leitor?

Francisco Bugalho, a quem José Régio chamou “pintor da Natureza”, encontrou no real um filão de maravilhoso. A Natureza que está na raiz da sua inspiração resplandece na obra deste poeta. Em cada poema percebe-se um movimento circular em torno da realidade, seja uma árvore, serra, fim-de-dia ou dois meninos. O movimento evolui e consuma-se quando, poeta e real, encontram a relação justa. O poema Montado Velho, entre muitos outros, é um exemplo bem significativo.

Começa assim:

Meu triste montado velho
Que paz tem quem te procura
E, em ti, vem achar o espelho
De uma vida sem doçura,
Mas livre de enganos vãos ! …


Francisco Bugalho terá deambulado pelo labirinto rumorejante das árvores do montado e a par dos equilíbrios de alma, que o poema deixa adivinhar, revitaliza a imaginação. Ora espiritualizando o real, ora concedendo concretismo a fenómenos físicos e psicológicos o poema continua:

Troncos rugosos, mas sãos,
Ásperos, sim, mas generosos,
Todos, na desgraça, irmãos,
Dos maus Invernos ventosos
E dos verões, sem pinga d’água.

Montado, que estranha mágua
Te confrange e te redime !
A tua visão afago-a .
És bom cenário pra um crime …
E pra milagres também.

O Poeta passa depois a informar o montado da existência de outros espaços, com outras cores e brilhos e outros sons.

Montado, além, mais pra além,
Há céus azuis e há searas.
E brandas águas que têm
O brilho de pedras raras,
E não há só solidão ! …

Solidão que experimenta quem está domiciliado num mundo à parte? Os atractivos enumerados, não seduzem o poeta, que permanece com o montado. Realiza-se a unidade entre ambos.

Mas essa tua canção
- solução d’alma que anseia –
Também a meu coração,
Furtivamente se enleia.
E aqui me fico contigo.

Sem ternura, nem doçura;
Mas longe do mundo vão,
Meu velho montado amigo ! …


É sempre preciso um poeta. Ele conduz-nos a um mundo mais vasto, mais ardente, mais belo, onde as dissonâncias se resolvem em harmonias.

2- Em 1960 José Régio escrevia assim: “Pela simples vivacidade dos sentidos, ainda Francisco Bugalho não seria o poeta que é; sendo já, sem nenhum desperdício de palavras, um belo pintor da Natureza … Os conhecidos sentidos … multiplica-os, transcende-os o poeta pela sua faculdade de sonhar, contemplar, cismar, abandonar-se. Eis que a sua comunicação com a Natureza vai muito além, assim, do primeiro contacto e penetra-a até aos seios do mistério …”. E é destas faculdades de “sonhar”, “contemplar” e de “cismar”, referidas por José Régio que nasce a obra do poeta, a importância do seu pensamento.

Se cada arte tem o seu próprio público, cujo comportamento e pensamento influencia, que acção escreverá a poesia ?

Diz-se que a poesia proporciona prazer. Porém, não existe só, para que os leitores alcancem a plenitude dos bem aventurados.

Na obra de Francisco Bugalho, o tema da relação entre os seres, aparece em diversos poemas. Num tempo em que os abusos inflingidos sobre a fauna e a flora são frequentes e por vezes irreparáveis, é útil conhecer outras formas de relacionamento. O poema Humildade demonstra que a vida quer esteja no Homem, nos animais, ou nas plantas é sempre a vida.

HUMILDADE

As águas beijei,
As nuvens olhei,
As árvores cantei,
Na sua beleza.

Os bichos amei,
Na sua bruteza,
Na sua pureza,
De forças sem lei.

E porque os amei
E os acompanhei,
Não me senti Rei
Na Mãe-Natureza.

Através de diversos encaminhamentos, e a poesia será um dos caminhos, nasce o desejo de estabelecer um modo melhor de regulamento, das relações entre o Homem e o meio natural.

Francisco Bugalho, o poeta “pintor da Natureza” terá vivido na perspectiva da eternidade. O poema A uma Árvore, celebra o triunfo da vida. Uma árvore que o poeta plantou, acompanha o ritmo das estações, regenera-se ciclicamente, ouve os sonhos dos filhos do poeta e eterniza-o.


A UMA ÁRVORE

Árvore
Quando eu morrer hás-de ficar.
Hás-de ver o passar doutras Estações.
Hás-de ouvir as canções
De uns outros ninhos, noutras Primaveras.
Junto de ti, meu filho há-de sonhar
Minhas antigas, fúlgidas quimeras.

Árvore
Quando eu morrer, hás-de falar
De mim, que te plantei.
E, em cada ramo novo que brotar,
Serás um gesto meu a perdurar:

- Por ti, não morrerei

Além do mais, a obra que Francisco Bugalho deixou, é algo de si mesmo, que está vivo.

- Bugalho, F. (1998). Poesia. 2ª edição. Editora LG, Lisboa.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

O Sol de Todos



Os olhos da minha amada não se comparam com o Sol
Shakespeare

A Natureza exprime sempre algo que a transcende, afirma Mircea Eliade e, deste facto, tanto pode resultar uma teoria científica, como uma sinfonia, um poema ou uma pintura. O avanço da Ciência, porém, trouxe alterações a vários níveis, na relação do Homem com a Natureza. Assim, conhecendo-se cientificamente um fenómeno natural, o pôr-do-Sol por exemplo, será ainda possível, continuar a olhá-lo com o mesmo estremecimento de alma que proporcionava antes de ter chegado a explicação da Ciência? Este poema de Baudelaire sobre os ocasos, proporcionará o mesmo aprazimento antes e depois da aquisição de conhecimentos sobre o fenómeno?

Os sóis-poentes
Revestem os campos
Os canais, a cidade inteira
De jacinto e ouro
O mundo adormece
Numa cálida luz.


O testemunho de certo cientista, sobre a questão dos efeitos da Ciência na relação do ser humano com a Natureza, interessa particularmente. É ele Hubert Reeves, conselheiro científico da NASA e doutorado em astrofísica nuclear. Conta Reeves que já na juventude vibrava perante um mar inflamado pelo Sol poente. Certo dia, porém, conhecia já os estudos do físico escocês Maxwell, estava diante do oceano sereno gloriosamente colorido pelo Sol, quando escutou uma voz interior que lhe dizia: Estes desenhos, estas formas, estas tonalidades cambiantes são as soluções matemáticas das equações de Maxwell, perfeitamente previsíveis e calculáveis. Nada mais do que isso ...No meu céu interior erguiam-se as equações de Maxwell, frias, inexoráveis. A sua luz crua abolira, assim me parecia, a frágil magia do céu rosa e do mar cintilante. Esta expressão, assim me parecia, que Reeves intercala, anuncia um desfecho simpático. Com efeito, no livro Malicorne, reflexões de um observador da Natureza, Reeves percorre uma trama compacta de caminhos, e o leitor acaba por concluir que o cientista encontrou explicações suficientes para continuar a deleitar-se com um pôr-do-Sol. De certo modo, este episódio, lembra a célebre resposta de Diógenes, dada a Alexandre o Grande, quando este, preocupado com a vida pobre que o filósofo levava, pergunta-lhe o que precisa para viver com mais conforto. A resposta, sobejamente conhecida não tardou: não me tires o meu Sol.

D. Quixote confortava Sancho dizendo-lhe que o Sol nasce para os maus e para os bons. Cervantes tinha razão, o Sol contempla todos, mas cada um recebe-o de seu modo e consoante as circunstâncias. Um pintor, um poeta e aquele profeta que ensinou a fazer da vida uma obra de arte, exemplificam. A luminosidade da Natureza, as variações de luz na sua relação com as formas surpreendiam os olhos de Monet que pintou cerca de quarenta “catedrais de Ruão”. Sempre a mesma fachada, sem céu nem solo, o pintor registou o efeito das variações da luz. Há a catedral de Ruão com Sol intenso, com sol, etc., etc. O poeta, supremo artista da palavra, utiliza-a ao serviço da fraternidade. Escreveu Pessoa: Bendito seja o mesmo Sol de outras terras que faz mais irmãos todos os homens. Jesus de Nazaré surpreende porque disse: Os justos resplandecerão como o Sol.

O Homem é inventivo, capaz de encontrar a saída de todos os labirintos, mas desenvolveu a inteligência mais rapidamente que as qualidades morais. As religiões apesar das boas intenções que as movem conduziram à intolerância e ao fanatismo, a Arte poderá ser um caminho para chegar à fraternidade ,à justiça, ao Amor. O Sol faz da Terra o nosso País.

sábado, 21 de novembro de 2009

Saber Ver


Como escreveu Pessoa, não basta não ser cego para ver as árvores e as flores. Se é preciso saber ver para realizar uma obra de arte, o mesmo se requer depois para compreendê-la, tal como com a Natureza.


Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores
Fernando Pessoa

Entre a esperança e o desespero vive-se uma odisseia iniciada num tempo sem princípio e, para ela, reclama-se perenidade e bom ambiente. A Natureza é o palco da aventura e os protagonistas, confrontados com os enigmas do universo e da vida, descobrem que a imaginação é um poderoso complemento da visão e deslumbram-se com a capacidade de criar. É por isso que, sob o mesmo céu e no meio de tantos fenómenos, sobressai a vastidão e precisão do conhecimento científico e cresce uma história fantástica, inspirada na infinita adição de obras de arte, de todos os tempos e de todas as origens. Ciências da Natureza e Arte, duas vias divergentes da mesma aventura intelectual, são o que de mais brilhante e de mais belo gerou a mente humana.

A paixão de conhecer apoderou-se do Homem e o desejo de compreender a própria existência e a complexidade prodigiosa do mundo visível alimenta-lhe o interesse por esse todo do qual faz parte. Ciência e Arte envolveram-se na empresa, por diferentes caminhos. O artista, cuja fantasia faz explodir como num sonho, usa uma dimensão de liberdade vedada ao cientista, este sujeito a leis rígidas, reconhece na crítica racional orientada pela ideia da verdade, o fundamento do seu trabalho. Haverá só diferenças entre um trabalho científico e uma obra de arte?

Ninguém será cientista se não estiver interessado em compreender o mundo e alargar a extensão e precisão do conhecimento científico segundo os quais este foi ordenado, afirma Kuhn; a Arte, não é mera técnica de entretenimento dos sentidos, nem passatempo de fazer reproduções, alerta Arnheim. Com efeito o desejo expresso nas palavras de Fausto (Goethe), que eu conheça o que o Universo / preserva intacto no seu âmago, manifesta que o criador artístico acalenta o sonho, de qualquer grande cientista da Natureza. Naturalmente que um conhecimento que se adquire através das peças de Shakespeare distingue-se do que resulte da pesquisa de biólogos e químicos e poderá vir a originar medicamentos eficazes na cura de doenças. Ambos são úteis.


Se não é finalidade da Arte duplicar habilmente a Natureza ou distrair, qual é então o seu objectivo e de que modo concreto o realiza? Se o artista não imita a Natureza por que a observa tão atentamente?

Fernando Pessoa disse que não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores e Cézanne explicou por que razão contemplava a Natureza demoradamente. O tempo e a reflexão, afirma, modificam pouco a pouco a cena até que acabamos por compreender. Para o pintor e para o poeta a imagem na retina é apenas o começo de um fenómeno complexo. O lema de Leonardo Da Vinci, era Saber Ver. O grande cientista-artista, conferia tal poder às palavras “saber” e “ver”, que dizia: os olhos encerram a beleza do mundo inteiro...são os senhores da astronomia, assistem e presidem a todas as artes humanas...reinam sobre os vários campos da matemática... criaram a arquitectura e a perspectiva e...a divina arte da pintura.


Mas se é preciso saber ver para realizar a obra, quer seja literária, pictórica, escultórica ou musical, o mesmo se requer depois, para compreendê-la. Poderemos também dizer que não é bastante não ser cego para ver uma obra de arte. Se é verdade que as grandes obras de arte guardam ciosamente os seus segredos, sabe-se também que no horizonte de cada uma há sempre uma interpretação a pairar. António Damásio, declara que a partir dos sinais da retina revelando dimensões, cores, formas, movimentos, o cérebro constrói enredos, verdadeiros ou não, sobre esses objectos e acontecimentos. Será este fenómeno que a arte irá sublimar em ideias e em essências espirituais. A suprema questão da obra de arte, afirmou James Joyce no Ulisses, está em quão profunda é uma vida que ela gera. A pintura de Gustave Moreau é a pintura das ideias. A mais profunda poesia de Shelley, as palavras de Hamlet põem o nosso espírito em contacto com a sabedoria eterna.



Infelizmente a Arte é um universo pouco visitado pela maioria das pessoas e, por isso mesmo, com pouco peso na sua vida. Os motivos serão muitos e variados e o pouco que se faz para que esta situação se inverta, ou é em vão, ou poucos resultados se colhem. Entre os insensíveis à obra de arte não estarão os responsáveis pela degradação do ambiente e pela perturbação da harmonia entre os homens? Entre eles talvez estejam também, os que possuem uma certa espécie de ventura, que semeia secura por onde passa.

Para apreciar o que os museus exibem e as salas de concerto dão a ouvir, para saborear o que uma boa leitura oferece, para estremecer perante uma catedral gótica é preciso usar o lema de Leonardo, é preciso aprender a Saber Ver.

sábado, 14 de novembro de 2009

Notícias de Segovia


Queridos Filhos:

Visitar lugares que falam de épocas passadas,
vividas na intensidade de um abrasamento religioso,
artístico ou de domínio,
altera o fluir dos nossos pensamentos e
marca as nossas vidas.

Saudades.

sábado, 7 de novembro de 2009

Um Modo de Discorrer sobre o Espírito de Sintra


Incorpóreo mas real, simultaneamente inconfundível e vago, o espírito de cada lugar resultará de uma complexa teia que o Tempo, a Terra e o Homem engenhosamente vêm tecendo. Há lugares que têm espírito e Sintra é um deles.

Para sentir o espírito de um lugar ou reflectir sobre ele, não há como conhecer-lhe a história, isto é, saber como o local foi outrora. Incorpóreo mas real, simultaneamente inconfundível e vago, o espírito de cada lugar resultará de uma complexa teia que o Tempo, a Terra e o Homem, engenhosamente vêm tecendo.

O Tempo, labirinto de sentidos, é enigmático para o filósofo, aquilo que sabemos quando ninguém no-lo pergunta mas não sabemos quando o pretendemos explicar (1), simplificado por Fernando Pessoa, O presente é todo o passado e todo o futuro, simbiótico no 1º acto do Parsifal, Vê meu filho, aqui o espaço e o tempo se confundem, premonitório para Jesus de Nazaré, Não conheceis os sinais dos tempos?.

A Terra é a morada comum.

O Homem, é o ser da constante dedicação à busca do alimento, da sexualidade e do trabalho mas, se movido por irresistível vontade de indagar, descobre um universo de raros fenómenos, para lá do metabolismo e da reprodução. Vive então a aventura de contemplar, de pensar, de criar.

O Tempo, a Terra e o Homem serão os criadores do espírito de um lugar.

Pascal considera o género humano um mesmo homem que subsiste e aprende continuamente, qual processo interminável e laborioso que aplicado a Sintra foi gerador das preciosidades que herdámos e conservamos. São, entre outras, relíquias arqueológicas, monumentos, pinturas e literatura que o local inspirou. Alimentam o espírito do lugar, único nas singularidades que acumula, igual a todos na fragilidade que o marca. Século após século, o Homem domina-o, e dominando, mantém-lhe a essência ou adultera-a.






Durante séculos, em Sintra, a Natureza desempenhou o papel de protagonista. De que modo? Que peso teve nos empreendimentos realizados? Como a apresentam os textos antigos?

Quem deambular pela Serra encontrará conventos nos lugares mais escondidos da floresta. Os muros de ameias do antiquíssimo Castelo dos Mouros, sobranceiro à Vila, ajustam-se aos cumes dos montes e estendem-se por eles. Palácios, quintas solarengas e vivendas apalaçadas, erguem-se entre luxuriante vegetação. Casas rústicas e aldeias saloias, espalharam-se pelas várzeas férteis e de abundantes águas. Tudo fazia parte integrante da paisagem, através de um apropriado enquadramento no ambiente natural. Em Sintra o património natural e o património cultural, formaram uma unidade.

Se mesmo hoje não é fácil evocar Sintra sem lhe associar a Natureza, no passado essa particularidade assumiu formas caprichosas. Textos antiquíssimos, outros mais recentes, esboçam imagens de Sintra no pretérito. Alguns deixam adivinhar vivências, sentimentos e preferências. O texto que se segue do século X, do geógrafo árabe Al-Bacr, tem o seu valor acrescido pela escassez de referências anteriores à Nacionalidade. O autor que aprecia a fecundidade da terra e do mar e a salubridade do ar, informa: (Sintra) ... é uma das vilas que dependem de Lisboa no Andaluz, nas proximidades do mar. Está permanentemente mergulhada em bruma que se não dissipa. O seu clima é são e os habitantes duram longo tempo. Tem dois castelos de extrema solidez. A vila está a cerca de uma milha do mar (...) A região de Sintra é uma das regiões onde as maçãs são mais abundantes. Esses frutos atingem uma tal espessura que alguns chegam a ter quatro palmos de circunferência. Acontece o mesmo com as pêras. Na Serra de Sintra crescem violetas selvagens. Da costa vizinha extrai-se âmbar excelente.

Cada vez que se trata de pensar Sintra em épocas remotas, há um trecho que é citação certa. Trata-se da carta atribuída a Osberno, cruzado inglês que em 1147 participou na operação de conquista da cidade de Lisboa aos mouros. Testemunha ocular dos factos que descreve, o cruzado junta ainda outras informações. É aí que Sintra aparece e, curiosamente, entre o real e o mito

Fica-lhe próximo (de Lisboa) o castelo de Sintra,(...) no qual há uma fonte puríssima, cujas águas, a quem as bebe, dizem, abrandam a tosse e a tísica; por isso quando os naturais dali ouvem tossir alguém logo depreendem que é um estranho(...). Nos seus pastos as éguas reproduzem-se com admirável fecundidade por quanto só com aspirar as auras concebem do vento , e depois, sequiosas, têm coito com os cavalos. Desta forma se casam com o sopro das auras.

O cronista Damião de Góis também é citação indispensável. Nele, e noutras fontes, avaliamos como em Sintra a Natureza condicionou o evoluir histórico. Lugar de bosques, brumas e silêncios, espaço predilecto de caçadas, atraiu reis e, com eles, uma multidão. Procuravam sossego, diversão e as belezas do lugar. Longe do bulício de Lisboa, recuperavam energias e viviam a situação de apaziguamento, que a Natureza proporciona.

(D. Manuel vem) a Symtra ter o Verãm, por ser hú dos lugares da Europa mais frescos, & alegre para qualquer Rei, Principe & senhor poder nelle passar tal têpo,... hà nella muita caça de veado, & outras alimárias, & sobre tudo muitas...boas frutas (...) & as milhores fontes dagoa (...) às quaes cousas todas acrescenta(...) hos magnificos paços, que no mesmo lugar hos reis tem, para seu aposento,& dos que cõelles vam.(2)

No último quartel do século XVIII e em inícios do século XIX Sintra desempenhou um papel importantíssimo, desta vez na produção artística. Uma pleíade de artistas, encantou-se com as belezas da região, narrou-as, comentou-as e descreveu as emoções que acompanharam a contemplação dos lugares. Muitos, confessaram-se incapazes de descrever todos os encantos que presenciavam. Byron é um exemplo: Eis Sintra e o seu Éden resplandecente surgindo num labirinto multicolor de montes e vales. Ai de mim, que não sei pintar nem descrever metade sequer das maravilhas em que os meus olhos se deleitam. Nasceu assim, uma vasta e preciosa obra, que veio enriquecer, o espírito de Sintra.

É neste espaço que hoje vivemos. Aqui fazemos e desfazemos, limpamos e poluímos, aplacamos e avivamos, pranteamos e festejamos. O que ficar desta aventura merecerá os aplausos e as censuras dos vindouros. Eles julgarão o nosso tempo, tal como hoje avaliamos o passado e é importante que assim se faça, para que o fluir dos homens e das ideias, se molde à magia deste lugar e lhe respeite a essência.



Como muito bem disse o poeta o presente é todo o passado e todo o futuro. Em Sintra o passado infiltra-se no quotidiano de cada um. No mínimo, vive-se à sombra do castelo e na vizinhança dos monumentos. O presente também é futuro; há a nobre missão de acautelar e aumentar a herança que recebemos. De que modo? Vítor Serrão está cheio de sabedoria quando apresenta o seu ponto de vista : torna-se imperioso que o crescimento rime com qualidade, que novas construções rimem com interesse arquitectónico, que futuros arranjos rimem com enquadramento cenográfico.

Há lugares que têm espírito e Sintra é um deles.

(1) WITTGENSTEIN (1967). Philosophische Untersuchungen. Frankfurt A. M., p. 61

(2) VITOR SERRÃO (1989). Sintra. Editorial Presença, Lisboa, p.96

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Hoje há Festa, canta a Flor!


Ontem, o Ouricinho-Cacheiro, aluno do 8º ano, irmão da Gipsófila e do Peito-Ruivo, pediu-me que compusesse uns “versos” para que na aula sejam musicados. Saíram assim:


Corre o rio para o mar
Tosse a água, molha o ar
Brincam estelas, ri-se a Lua
Uiva o galgo pela rua

Olha a noite para baixo
Vê o melro a acordar
Olha Terra para cima
Sente o Sol quase a chegar

Dançam estrelas, corre a Lua
Dançam ondas lá no mar
Dançam melros andorinhas
Passa o rio vai a saltitar

Olha o céu para baixo
Olha a Terra para cima
Tudo canta tudo dança
Espreita o Sol lá na colina

Veio o Sol e foi-se a Lua
Vão crianças pela rua
Brilha a Terra tudo é cor
Hoje há festa canta a Flor

domingo, 1 de novembro de 2009

O Futuro é Biologica e Espiritualmente Aberto (IV)

4. ESPERANÇA

Procurem ver o mundo como na verdade ele pode ser visto,
como um lugar maravilhoso, que, à semelhança de um jardim,
podemos cultivar e tornar ainda melhor.
Procurem ter a humildade de um jardineiro experiente,
de um jardineiro que sabe que muitas das suas tentativas não irão ser bem sucedidas.
Karl Popper (1983)


Sendo a Noite povoada por um número incalculável de estrelas, algumas cem vezes maiores que o Sol e mil vezes mais quentes, por que motivo é ela negra? Desejando o ser humano viver uma vida pacífica, venturosa, feliz, por que razão novos conflitos nascem, equívocos multiplicam-se, e o alívio para o sofrimento tarda?


Sobre a Noite os cientistas explicam o fenómeno que atribuem à expansão do Universo: a luz das estrelas espalha-se num espaço cada vez mais vasto. A expansão é responsável pela existência da noite informa Reeves no livro Um Pouco Mais de Azul. Sobre o Homem, que tal como o Universo também está em “expansão,” paira um certo mistério. O conhecimento que procura na forma de interrogação permanente, não tem limites: vai à Lua, desce às profundezas oceânicas, dispõe de um império tecnológico, descobre o ADN chave do código genético, porém, há uma diferença abissal entre o seu desenvolvimento intelectual, e a quase estagnação, nalguns casos até retrocesso, das qualidades morais. Elas não acompanham o desenvolvimento intelectual. Há uma explicação para esta evidência? É possível que a situação se altere? Se do passado, chegam ecos de vidas, vividas de um modo tão exemplar, por que não sonhar com a multiplicação destes exemplos, de tal modo que a Paz reine sobre a Terra?

Kant, entre muitos outros, é um modelo notável e o episódio que se segue esclarecedor. O ano de 1804 ainda não tinha meia centena de dias. Naquele 12 de Fevereiro em Konigsberg, onde Immanuel Kant vivera os oitenta anos da sua vida, corre a notícia da morte do filósofo. Vivera os últimos anos da vida em completo recolhimento e por isso os amigos pensam que vai ter um funeral simples. Enganam-se. À medida que a notícia se espalha, aumenta o fluxo das pessoas que vão render-lhe a última homenagem e, no dia do funeral, um cortejo imenso acompanha a urna ao som de todos os carrilhões da cidade. Os relatos dos contemporâneos informam que jamais a cidade de Konigsberg vira cortejo fúnebre semelhante. Herder, que fora seu aluno, fala assim do grande pensador: valorizava tudo e reconduzia tudo a um conhecimento sem preconceitos da natureza , e ao valor moral dos homens. A história dos homens, dos povos e da natureza...eram as fontes que davam vida à sua lição e à sua conversação ...Encorajava e obrigava docemente a pensar por si. Popper afirma que os concidadãos de Kant acorreram ao funeral para lhe testemunharem o seu reconhecimento como mestre e proclamador dos direitos do homem, da igualdade perante a lei, do cosmopolitismo, da auto-libertação através do saber e, quiçá mais importante ainda da paz eterna sobre a Terra.

Viver ainda poderá ser uma aventura feliz, quando um dia, a Paz reinar entre os homens. Pablo Neruda (1904-1973) laureado com o prémio Nobel em 1971 crê que isso seja possível. No livro Confesso que vivi, escreve sobre o futuro:

Resta-me uma fé absoluta no destino humano, uma convicção cada vez mais consciente de que nos aproximamos de uma grande ternura. Escrevo sabendo que sobre as nossas cabeças, sobre todas as cabeças existe o perigo da bomba da catástrofe nuclear, que não deixaria ninguém nem nada sobre a Terra. Pois bem nem isso altera a minha esperança. Neste momento crítico, neste sobressalto de agonia sabemos que entrará a luz definitiva pelos olhos entreabertos. Entender-nos-emos todos. Progrediremos juntos. Esta esperança é irrevogável.

No reino do amor há muitas moradas.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O Futuro é Biologica e Espiritualmente Aberto (III)


3. Por um Mundo melhor


Na História Natural dos sentimentos
tudo se transformou
O amor tem outras falas,
a dor outras arestas,
a esperança outros disfarces,
a raiva outros esgares
António Gedeão


Situado num cenário natural cujo poder não pode igualar e preocupado com as vicissitudes da família humana, o Homem, mesmo aquele cujo espírito está pleno de entusiasmo e com forte tendência para interpretar os factos de modo confiante, por vezes interroga-se: Será trágica a essência da vida? Onde vive a comunidade dos homens piedosos?

Teoricamente o Homem, reparte-se por dois blocos. Os optimistas que acalentam a máxima de Cícero ninguém pode ser bem-aventurado sem virtude e que procuram as fontes do prazer genuíno, conhecimento científico, experiência estética e os pessimistas, que cultivam e embalam angústias, que guardam raivas e ressentimentos que vêem a morte encerrada em cada ser. Entre uns e outros, haverá um grande número de indecisos. Se a confiança se vai apagando como vela que se consome, acabam por engrossar o conjunto dos pessimistas.

Copérnico informou que o Homem não está no centro do Universo e o espanto e a violência acolheram a revelação. Na actualidade, espanto e polémica intelectual, acompanham a marcha do conhecimento científico. Quando no seio da família humana germina o desencanto há sempre um intelectual a culpar outro intelectual, pelo desconserto do mundo.

Bertrand Russel (1872-1970), distinguido com o prémio Nobel da Literatura e com o prémio Nobel da Paz, manifesta alguma reserva acerca dos resultados futuros da teoria da evolução. Pensa ele que no estado actual dos nossos conhecimentos nenhuma filosofia optimista pode fundamentar-se na evolução. Com efeito ainda no século XIX, quando se acreditava que todos os seres vivos eram imutáveis, Darwin observa que, indivíduos da mesma espécie, divergem entre si. Tudo começa quando em 1832, com apenas 24 anos de idade, participa como naturalista, na grande expedição científica do brigue britânico Beagle. Entre muitos outros casos, ele nota que as tartarugas das ilhas Galápagos estão adaptadas às características do ambiente. As que habitam ilhas áridas, alimentam-se de folhas de árvores e possuem pescoços longos, as que vivem em ilhas com abundância de água e vegetação rasteira, têm pescoços curtos. Durante mais de duas décadas Darwin acumula exemplos, estuda-os e, em 1856, apresenta o célebre livro A Origem das Espécies Por Meio da Selecção Natural ou a Preservação das Raças Favorecidas na Luta pela Existência. Sendo um contributo importante para a compreensão da história da vida na Terra, o darwinismo, com o relevo que dá às ideias de selecção natural e sobrevivência do melhor adaptado, passa a imagem de um mundo cruel, de um meio ambiente hostil e, ainda, há quem aproveite o darwinismo para justificar comportamentos desumanos, competições e guerras. Jacques Monod, aumenta o desencanto. Distinguido com Prémio Nobel da Medicina em 1965 e autor do livro Acaso e Necessidade, propõe uma explicação, para o aparecimento da vida e do Homem na Terra. Ele afirma que nada predestinava a vida a aparecer sobre a Terra e o ser humano a emergir do mundo animal o acaso e mais ninguém tem a decisão, isto é, todas as transformações que a vida vem realizando ao longo de milhares de milhões de anos, todas as mutações que os organismos vegetais e animais foram conseguindo de geração em geração, todas as leis da Natureza, descobertas e analisadas pelos homens da ciência, tudo é puramente fortuito. Não restam dúvidas, ficar pela explicação do acaso é muito cómodo, mas o tema merece o esforço de uma conclusão mais digna.

Popper aponta os malefícios destas e de outras interpretações, que classifica de nefastas e pessimistas: Ele afirma: É precisamente no pessimismo que eu vejo o maior risco, ou seja na tentativa permanente de dizer aos jovens que vivem num mundo cruel. Considero este o mais grave perigo do nosso tempo, mais grave ainda que a bomba atómica o sugerir-se às pessoas que vivem num mundo ruim, num mundo hipócrita ...naturalmente que é um mundo cruel, uma vez que há um mundo melhor... temos que prosseguir nessa procura de um mundo melhor.

Curiosamente a revista CAIS de Outubro de 2007 inclui um texto repassado de amargura e sofrimento escrito por Arnaldo Rozembaum Spatz. Ele, que eleva ao expoente máximo o seu pessimismo, vive as plurais misérias da época: uma vida opaca e vazia, considera-se uma mazela, um peso morto e sente-se tratado como lixo. A solidão o medo, a pobreza, a dor, são os ingredientes que fazem o quotidiano de Arnaldo Spatz, e por tudo isso ele afirma: já não sei até que ponto ainda existo, pois o facto é que nos dias actuais nós não somos nada além do que temos . Portanto, como não tenho nada já não sei mais quem sou. Talvez eu seja apenas uma ilusão da minha própria mente cansada e deturpada pelas muitas vezes em que perco os sentidos no meio da minha própria dor.

Imerso num mar de sentimentos magoados, pune-se a si próprio, ao perder a capacidade de procurar fontes de alívio. Spatz passa pelas coisas sem as ver: bibliotecas com quilómetros de prateleiras repletas de livros prometedores de preciosas horas de leitura, museus com obras de arte, realizações singulares da mente humana, de valor eterno, espectáculos naturais de impressionante beleza, capazes de transformar a mágoa em admiração e em espiritualidade.

Arnaldo Spatz sente na pele a necessidade de existir um mundo melhor, mas talvez não tenha pensado ainda que, para isso, todos, são precisos, ele também.

domingo, 25 de outubro de 2009

O Futuro é Biológica e Espiritualmente Aberto (II)

2. Onde moram os Deuses






Os deuses não morreram: O que morreu
foi a nossa visão deles. Não se foram:
deixámos de os ver. Ou fechámos os olhos,
ou entre eles e nós uma névoa qualquer se entremeteu.
Subsistem, vivem como viveram, com a mesma
divindade e a mesma calma.
Ricardo Reis


Aristóteles (384-322 a.C.), o mais importante filósofo e cientista da Antiguidade, cujos textos influenciaram o pensamento cosmológico medieval, situa a Terra imóvel no centro do Universo. O céu, imutável e majestoso, lugar plausível para a morada dos deuses, é o espaço da perfeição e do poder. Na obra DOS Céus escreveu:


...A Terra não se move, nem se localiza em mais nenhum lado a não ser no centro...Todos os homens têm uma concepção dos deuses e todos atribuem o lugar mais elevado ao divino, tanto bárbaros como Helenos... Ao longo de todo o tempo passado, de acordo com registos apontados de geração em geração, não encontramos vestígios de mudança nem no conjunto do céu exterior nem em nenhuma das suas partes.


O tempo flui, passam séculos e milénios e em 1965, Arno Penzias e Robert Wilson descobrem uma “luz” fraca, muito fria, que preenche todo o espaço do Universo. O astrofísico George Gamow, trinta anos antes, já a havia anunciado. As estrelas estão mergulhadas nessa luz originária cuja intensidade e temperatura vêm diminuindo com a expansão do Universo. Entre a imutabilidade do céu de Aristóteles e a detecção desta radiação fóssil, crescem ideias que tentam explicar a origem e destino do Homem, a origem e estrutura do Universo. Tudo se resume à saga de substituir teoria por teoria. A Ciência não sai molestada desta dança de conjecturas, porque o seu objectivo é atingir a sempre fugidia “verdade absoluta” mas o ser humano, que já inscrevera num quadro coerente as acções práticas e espirituais, que já tornara inteligível o cenário onde decorre a aventura da vida, que já encontrara explicações satisfatórias para os fenómenos que observa na Natureza, cada vez que uma alteração ocorre, ressente-se. Cosmologia, teologia e moralidade estão indelevelmente entrelaçadas e as teorias substituindo-se umas às outras, alteram valores que dão sentido e coerência à vida da família humana.


Desde Copérnico (1473-1543) sabe-se que a Terra não ocupa o centro do Universo nem sequer o centro do sistema solar. Ao expulsar a Terra de uma posição central e com ela o Homem, Copérnico revela um facto, real, não apresenta uma nova filosofia nem emite juízos, contudo a revelação gera escândalo, e ameaça a doutrina da Igreja. Não é raro fazer-se humor acerca daquilo que, de certo modo, é assustador. Lutero zomba de Copérnico e chama-lhe o tonto que quer virar de pernas para o ar toda a ciência.


Thomas Kuhn inclui no sexto capítulo do livro A Revolução Copernicana dois poemas que condenam o exílio da Terra nas trevas do firmamento. Conservantismo cosmológico, endeusamento das fontes clássicas do conhecimento, estão na origem dessas manifestações poéticas. Como é natural os poetas que as produziram contribuíram para a divulgação dos novos conhecimentos, já que a poesia atinge uma audiência muito mais vasta do que os complicados tratados científicos. O primeiro, poema publicado em França e Inglaterra em 1578, anuncia já o grande debate que se seguiria:


Aqueles letrados que pensam (pensar, que brincadeira absurda)
Que nem o céu nem as estrelas giram,
Nem dançam à volta desta grande bola terrena;
Mas que a própria Terra, este nosso globo volumoso,
Dá uma volta em cada vinte e quatro horas:
E nós parecemos novatos do interior
Recém trazidos para bordo, para aventuras nos mares
Que ao afastarem-se da terra , supõem que o barco fica quieto, e a terra vai
Assim, nunca uma seta lançada para cima devia,
Cair no mesmo lugar onde está o atirador

No segundo, publicado em 1611, e escrito pelo teólogo inglês John Donne adensam-se as preocupações. Intitulado, A Anatomia do Mundo lamenta-se a pulverização das velhas teorias:


A nova Filosofia põe tudo em dúvida,
O elemento do fogo está posto de parte;
O Sol está perdido, e a Terra, e não há engenho de homem
Que possa indicar onde o procurar.
E livremente os homens confessam que este mundo está exausto

Quando nos Planetas e no Firmamento
Eles procuram tanta novidade; depois vêem que isto
Se fragmentou novamente em Átomos .
Tudo está em pedaços, toda a coerência desapareceu...

Em 1543, Copérnico, ainda terá visto um exemplar da primeira edição do seu livro De Revolutionibus Orbium Caelestium mas, segundo a tradição, já no leito de morte. Pior sorte teve Giordano Bruno. Ao tempo a dissensão incluía uma questão que hoje ainda não foi resolvida, os limites do Universo. Os teólogos diziam que só Deus é infinito. Num Universo infinito onde se localizaria o trono de Deus? Bruno afirmava que o seu Deus era mais poderoso pois criara um Universo infinito Esta ousadia e outras, valeram-lhe a fogueira em 1600.

Os séculos continuam a passar, a influência mágica de Igreja esbate-se e a religião desiste de perseguir a Ciência. A teoria da evolução da matéria, e do aparecimento da vida na Terra, o parentesco profundo do Homem com tudo o que existe no Universo contradizem a cosmologia bíblica sem reacções fatais, contudo, ainda há quem continue a fazer uma interpretação literal do Livro do Génesis.


O Universo não foi criado em seis dias mas em milhares de milhões de anos, o cérebro dos nossos mais longínquos antepassados era cerca de três vezes menor, que o do Homem actual, as lutas entre animais são anteriores à existência do Paraíso Terrestre, o célebre casal Adão e Eva, não foi expulso daquele lugar de delícias onde como relata o livro do Génesis Deus passeava pela viração do dia.


A existência de um Deus para adorar é importante na vida do ser humano. O livro mundialmente respeitado, O Sagrado e o Profano, de Mircea Eliade afirma que o homem a-religioso no estado puro é um fenómeno muito raro, mesmo na mais dessacralizada das sociedades modernas. Os velhos deuses homéricos demasiado humanos, que roubam, mentem, cometem adultério, vivem no Olimpo, Aristóteles declara que todos atribuem o lugar mais elevado, o céu, ao divino, certos teólogos não aceitam a ideia de um universo infinito porque assim têm dificuldade em localizar o trono da Deus, no livro do Génesis, Deus passeava pelo jardim do Eden. Onde mais pode estar a divindade?

Heraclito de Éfeso, que alcançou fama de sábio, é o protagonista de um episódio contado por Aristóteles. António Damásio um, entre os maiores neurocientistas mundiais, apresenta uma visão da existência interior do ser humano verdadeiramente espantosa, na riqueza das possibilidades que encerra. O primeiro, cuja actividade filosófica principal terá terminado por volta de 480 a. C., era nobre de nascimento mas recusou os privilégios que lhe pertenciam vivendo com sobriedade. Terá escrito um livro intitulado Da Natureza dividido em três partes: Do Universo, Da Política, Da Teologia. Dedicou-o a Ártemis e colocou-o no templo da deusa A fama do filósofo expandia-se territorialmente e certo dia um grupo de curiosos desejou conhecê-lo. Que esperariam encontrar? Certamente algo diferente do que vêem, um homem comum, simples, friorento, que se aquece junto ao forno. Nada de raro, nada de excepcional, por isso, decepcionados, retiram-se. Em vão Heraclito tenta detê-los proferindo a célebre frase, Os deuses também estão aqui presentes. A palavra aqui, será o lugar onde se encontra, em casa junto ao forno, ou será o próprio filósofo, o seu corpo convertido em templo?

António Damásio no livro Ao Encontro de Espinosa afirma que vivemos rodeados de estímulos capazes de evocar a espiritualidade, e enumera alguns: contemplação da Natureza, reflexão sobre as descobertas científicas, experiência das artes. O cientista pensa que estes estímulos, e uma vida equilibrada, virtuosa, e delicada proporcionam momentos de efémera plenitude, aquilo que ele classifica de momentos de perfeição, visões furtivas do divino, breves confortos que deixam esses seres humanos à espera do próximo momento de perfeição e da próxima visão furtiva.


O Homem procura um Deus para adorar.

sábado, 24 de outubro de 2009

O Futuro é Biológica e Espiritualmente Aberto (I)

Uma reflexão sobre origem do Universo, da Vida na Terra e do Homem. Citando Gedeão - Se eu tivesse a memória da luz, … os meus olhos reviveriam os dinossáurios que caminharam sobre a Terra, os meus ouvidos lembrar-se-iam dos rugidos dos oceanos...

Casos e opiniões natura e uso
Fazem que nos pareça esta vida
Que não há nela mais que o que parece
Camões
A Terra é um palácio que olha para cima
O céu é um palácio que olha para baixo
Canção Malgaxe





1. Se tivéssemos a memória da luz

O homem antigo não tem a noção das dimensões do Universo que julga eterno e imutável, sente-se instalado numa Terra que supõe fixa, imóvel e, por fantasia, conveniência e estética, inscreve-a numa esfera onde as estrelas volteiam. A que distância se encontram? De que matéria são feitas? - poderá ele ter pensado.
O homem da Renascença aponta um telescópio para o céu, atónito vê-o expandir-se, tomar proporções gigantescas, descobre que a Terra é um planeta vulgar que gira à volta do Sol como tantos outros e pensa: Onde estou eu? Por que estou aqui?

Blaise Pascal (1623-1662) comenta os mais recentes conhecimentos científicos com a célebre frase: assusta-me o silêncio eterno destes espaços infinitos.

No século XX ainda há quem pense que o Universo contém um pequeno número de galáxias, mas hoje, os telescópios espaciais, mostram um número incontável daqueles sistemas estelares. O Universo será infinito? Não há resposta para esta e outras questões, mas o que a comunidade científica já descobriu, surpreende demasiado.

O astrofísico canadiano Herbert Reeves no livro Malicorne dá esta informação extraordinária: As galáxias afastam-se umas das outras. Portanto no passado estavam mais próximas. A partir da observação do movimento das galáxias e com a ajuda dos nossos conhecimentos da física, é possível recuar no tempo e reconstituir as condições anteriores do cosmo. Aparece-nos então progressivamente mais denso, mais quente e mais luminoso. A detecção da radiação fóssil, emitida há 15000 mil milhões de anos, dá-nos disso a confirmação...

A imagem mais antiga do Universo é uma imagem de monotonia. Uma papa homogénea de partículas elementares.

O cosmo tem uma história e os novos cientistas, herdeiros intelectuais das teorias pré-copernicanas e pós-copernicanas, são os historiadores. Eles narram a epopeia da matéria, desde a simplicidade da sua natureza inicial, até à complexidade, diversidade e beleza do Universo actual. Pelos meandros do percurso assinalam dois eventos cujo sucesso não é alheio às potencialidades já existentes no magma inicial: o despertar da vida e o aparecimento do Homem.

O fenómeno atrai audiências dos mais diversos campos do saber e as interrogações sucedem-se: A que leis obedece a Natureza? Como encontra ela formas cada vez mais complexas e perfeitas? Como surgiu a vida na Terra? Que se passou para que o ser humano seguisse um rumo diferente dos outros animais? Terá sido um simples acaso? Filosofia e religião como reagem aos novos conhecimentos?
A vida humana e o Universo estão na mesma urdidura e Reeves, por motivos óbvios, não perde uma oportunidade para o divulgar. Com simplicidade e clareza declara: Com as montanhas, as estrelas, as pedras, as rãs, com tudo o que existe estamos comprometidos nesta vasta experiência da organização da matéria.

Quem procura as raízes da ciência e da poesia no mito poético encontra-as. Com efeito, o mito, ao tentar explicar o Homem e o Universo, antecipa a Ciência. António Gedeão, lírica e epicamente, mistura poesia e ciência, recua para tempos imemoriais, e encontra as raízes cósmicas do ser humano, tudo no Poema da Eterna Presença:

Estou, nesta noite cálida, deliciadamente estendido sobre a relva,
De olhos postos no céu, e reparo, com alegria,
Que as dimensões do infinito não me perturbam.
(O infinito! essa incomensurável distância de meio metro
Que vai desde o meu cérebro aos dedos com que escrevo!
O que me perturba é que o todo possa caber na parte,
Que o tridimensional caiba no adimensional, e não o esgote
O que me perturba é que tudo caiba dentro de mim,
De mim, pobre de mim que sou parte do todo

Se eu tivesse a memória da luz
Que mal começa, na sua origem, logo se propaga,
Sem que nenhuma se esquecesse de propagar;
Os meus olhos reviveriam os dinossáurios que caminharam sobre a Terra,
Os meus ouvidos lembrar-se-iam dos rugidos dos oceanos...
Guardei a memória do infinito,
daquele tempo sem tempo, origem de todos os tempos,
em que assisti disperso, fragmentado, pulverizado,
à formação do Universo.
Tudo se passou defronte de partes mim
E aqui estou eu feito carne para o demostrar,
Porque os átomos da minha carne...
Já cá estavam.

Gedeão e Reeves estão em harmonia. A Natureza é a família do Homem. Será esta a grande mensagem da Ciência dos nossos tempos?

Em cada Primavera rebentos minúsculos irrompem dos troncos sem folhas de árvores e arbustos. O processo evolutivo também teve a sua Primavera quando o Homem, qual rebento, apareceu. E é por isso que o ser humano.

O porvir ampliará os conhecimentos, responderá a questões que hoje ainda não têm resposta mas, colocará outras. O futuro está por revelar. Por ora tudo parece saído do cinzel de exímio escultor e do pincel de fantástico pintor.