Incorpóreo mas real, simultaneamente inconfundível e vago, o espírito de cada lugar resultará de uma complexa teia que o Tempo, a Terra e o Homem engenhosamente vêm tecendo. Há lugares que têm espírito e Sintra é um deles.
Para sentir o espírito de um lugar ou reflectir sobre ele, não há como conhecer-lhe a história, isto é, saber como o local foi outrora. Incorpóreo mas real, simultaneamente inconfundível e vago, o espírito de cada lugar resultará de uma complexa teia que o Tempo, a Terra e o Homem, engenhosamente vêm tecendo.
O Tempo, labirinto de sentidos, é enigmático para o filósofo, aquilo que sabemos quando ninguém no-lo pergunta mas não sabemos quando o pretendemos explicar (1), simplificado por Fernando Pessoa, O presente é todo o passado e todo o futuro, simbiótico no 1º acto do Parsifal, Vê meu filho, aqui o espaço e o tempo se confundem, premonitório para Jesus de Nazaré, Não conheceis os sinais dos tempos?.
A Terra é a morada comum.
O Homem, é o ser da constante dedicação à busca do alimento, da sexualidade e do trabalho mas, se movido por irresistível vontade de indagar, descobre um universo de raros fenómenos, para lá do metabolismo e da reprodução. Vive então a aventura de contemplar, de pensar, de criar.
O Tempo, a Terra e o Homem serão os criadores do espírito de um lugar.
Pascal considera o género humano um mesmo homem que subsiste e aprende continuamente, qual processo interminável e laborioso que aplicado a Sintra foi gerador das preciosidades que herdámos e conservamos. São, entre outras, relíquias arqueológicas, monumentos, pinturas e literatura que o local inspirou. Alimentam o espírito do lugar, único nas singularidades que acumula, igual a todos na fragilidade que o marca. Século após século, o Homem domina-o, e dominando, mantém-lhe a essência ou adultera-a.
Durante séculos, em Sintra, a Natureza desempenhou o papel de protagonista. De que modo? Que peso teve nos empreendimentos realizados? Como a apresentam os textos antigos?
Se mesmo hoje não é fácil evocar Sintra sem lhe associar a Natureza, no passado essa particularidade assumiu formas caprichosas. Textos antiquíssimos, outros mais recentes, esboçam imagens de Sintra no pretérito. Alguns deixam adivinhar vivências, sentimentos e preferências. O texto que se segue do século X, do geógrafo árabe Al-Bacr, tem o seu valor acrescido pela escassez de referências anteriores à Nacionalidade. O autor que aprecia a fecundidade da terra e do mar e a salubridade do ar, informa: (Sintra) ... é uma das vilas que dependem de Lisboa no Andaluz, nas proximidades do mar. Está permanentemente mergulhada em bruma que se não dissipa. O seu clima é são e os habitantes duram longo tempo. Tem dois castelos de extrema solidez. A vila está a cerca de uma milha do mar (...) A região de Sintra é uma das regiões onde as maçãs são mais abundantes. Esses frutos atingem uma tal espessura que alguns chegam a ter quatro palmos de circunferência. Acontece o mesmo com as pêras. Na Serra de Sintra crescem violetas selvagens. Da costa vizinha extrai-se âmbar excelente.
Cada vez que se trata de pensar Sintra em épocas remotas, há um trecho que é citação certa. Trata-se da carta atribuída a Osberno, cruzado inglês que em 1147 participou na operação de conquista da cidade de Lisboa aos mouros. Testemunha ocular dos factos que descreve, o cruzado junta ainda outras informações. É aí que Sintra aparece e, curiosamente, entre o real e o mito
Fica-lhe próximo (de Lisboa) o castelo de Sintra,(...) no qual há uma fonte puríssima, cujas águas, a quem as bebe, dizem, abrandam a tosse e a tísica; por isso quando os naturais dali ouvem tossir alguém logo depreendem que é um estranho(...). Nos seus pastos as éguas reproduzem-se com admirável fecundidade por quanto só com aspirar as auras concebem do vento , e depois, sequiosas, têm coito com os cavalos. Desta forma se casam com o sopro das auras.
O cronista Damião de Góis também é citação indispensável. Nele, e noutras fontes, avaliamos como em Sintra a Natureza condicionou o evoluir histórico. Lugar de bosques, brumas e silêncios, espaço predilecto de caçadas, atraiu reis e, com eles, uma multidão. Procuravam sossego, diversão e as belezas do lugar. Longe do bulício de Lisboa, recuperavam energias e viviam a situação de apaziguamento, que a Natureza proporciona.
(D. Manuel vem) a Symtra ter o Verãm, por ser hú dos lugares da Europa mais frescos, & alegre para qualquer Rei, Principe & senhor poder nelle passar tal têpo,... hà nella muita caça de veado, & outras alimárias, & sobre tudo muitas...boas frutas (...) & as milhores fontes dagoa (...) às quaes cousas todas acrescenta(...) hos magnificos paços, que no mesmo lugar hos reis tem, para seu aposento,& dos que cõelles vam.(2)
No último quartel do século XVIII e em inícios do século XIX Sintra desempenhou um papel importantíssimo, desta vez na produção artística. Uma pleíade de artistas, encantou-se com as belezas da região, narrou-as, comentou-as e descreveu as emoções que acompanharam a contemplação dos lugares. Muitos, confessaram-se incapazes de descrever todos os encantos que presenciavam. Byron é um exemplo: Eis Sintra e o seu Éden resplandecente surgindo num labirinto multicolor de montes e vales. Ai de mim, que não sei pintar nem descrever metade sequer das maravilhas em que os meus olhos se deleitam. Nasceu assim, uma vasta e preciosa obra, que veio enriquecer, o espírito de Sintra.
É neste espaço que hoje vivemos. Aqui fazemos e desfazemos, limpamos e poluímos, aplacamos e avivamos, pranteamos e festejamos. O que ficar desta aventura merecerá os aplausos e as censuras dos vindouros. Eles julgarão o nosso tempo, tal como hoje avaliamos o passado e é importante que assim se faça, para que o fluir dos homens e das ideias, se molde à magia deste lugar e lhe respeite a essência.
Como muito bem disse o poeta o presente é todo o passado e todo o futuro. Em Sintra o passado infiltra-se no quotidiano de cada um. No mínimo, vive-se à sombra do castelo e na vizinhança dos monumentos. O presente também é futuro; há a nobre missão de acautelar e aumentar a herança que recebemos. De que modo? Vítor Serrão está cheio de sabedoria quando apresenta o seu ponto de vista : torna-se imperioso que o crescimento rime com qualidade, que novas construções rimem com interesse arquitectónico, que futuros arranjos rimem com enquadramento cenográfico.
Há lugares que têm espírito e Sintra é um deles.
(1) WITTGENSTEIN (1967). Philosophische Untersuchungen. Frankfurt A. M., p. 61
(2) VITOR SERRÃO (1989). Sintra. Editorial Presença, Lisboa, p.96
Olá Filha do Luar, gostei muito do seu artigo. Já faz 10 anos que estive em Sintra (eu sou do Rio de Janeiro) e gostei muito. Se Deus quiser ainda voltarei a essa Serra encantada. Um beijo.
ResponderEliminarA Serra de Sintra agradece-lhe a visita, ela revela-se aos iniciados. Desejo-lhe o BEM, cumprimentos da Filha do Luar (isto é, Filha de Raul).
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