domingo, 2 de outubro de 2011

UMA COREOGRAFIA DE VERDES





Ficava o caro Tejo e a fresca Serra

De Sintra, e nela os olhos se alongavam

LUSÍADAS, V, 3

A floresta cobre o declive da montanha e a cor é o elemento distinto, os outros, matéria e forma e espaço, submetem-se-lhe. Um verde regenerado na última Primavera, contorna obstáculos, alastra, abre caminhos em singular coreografia que não é invenção de poeta, mas talento de milhares de árvores, de uma multidão de folhas. Tonalidades de verde escorrem pela encosta. Entre verdes, espreitam volumosas rochas modeladas pelo tempo e dominadas pelo peso que as afunda e imobiliza.

Vento ausente, sol no alto, o olhar do espectador desliza, poisa, alonga-se, vai de um verde a outro verde, o corpo envolve-se na acção do olhar. Na memória, vai ficar o espectáculo de uma inundação de verdura, e a agradável experiência de não estar só a ver, estar também a sentir, a ser tocado por sinais de bonança que lhe chegam ao frágil corpo, não há dores nem temores. António Damásio, expoente máximo da neurologia mundial, investiga à luz da ciência este tipo de emoções e consequentes sentimentos. No LIVRO DA CONSCIÊNCIA, descreve ao leitor as alterações fisiológicas que ele experimentou, enquanto contemplava extraordinária paisagem natural. A palavra está sempre disponível para quem dela necessita e o cientista serve-se com elegância e sabedoria: não estou apenas a ver, estou também a sentir emoções causadas por esta beleza majestosa, e a sentir todo um leque de alterações fisiológicas que se traduzem numa sensação calma de bem-estar. Isto não está a acontecer por deliberação minha, e não sou capaz de evitar esses sentimentos, tal como não seria capaz de os iniciar. Eles chegaram, estão aqui e vão ficar, numa qualquer modulação, enquanto o mesmo objecto consciente permanecer à vista e enquanto a minha reflexão os mantiver em reverberação. Talvez o cientista também queira dizer que, se poeticamente o Homem habita a Terra, uma serena surpresa pode ocorrer, mas se anda distraído e passa pelas coisas sem as ver ou lhes dirige apenas um olhar apressado, corre o risco de desperdiçar uma boa parte do belo que a vida tem para oferecer.

Como nasceu e vai crescendo a aura que envolve Sintra? A paisagem sintrense tem espessura metafísica ou a sua famosa beleza resulta simplesmente da arquitectura do cenário natural e do agradável desalinho de árvores triviais na luta pela luz e pela água?

Pelos bastidores do aéreo verde vai um movimento extraordinariamente complexo, é a árvore a esmerar-se na seiva. Os pelos absorventes das extremidades radiculares sugam a água carregada de sais minerais. Magicamente, ou não, esta solução é bombeada a partir do solo, passa de uma célula para outra, de um andar para outro, e chega às folhas cujos cloroplastos, hábeis alquimistas, transformam a energia solar em substância orgânica. Porém, a aura que envolve Sintra não advém apenas de fenómenos do mundo natural, outros importantes elementos entram na composição do etéreo tecido que a constitui.

Os tempos cruzam-se, o passado abre-se em ecos que ressoam multiplicando-se. No eco do eco mais longínquo, já Sintra começa a ser e a entregar-se à luz da palavra que persegue a essência. É o trabalho da poesia. Como quem passa ao futuro uma preciosidade, cada geração recebe a herança da geração anterior, enriquece-a de novas experiências e passa-a à seguinte. Adensa-se a aura e cresce o “poema”, porque ainda que muitos, todos os poemas dedicados a Sintra são apenas um, interminável, repetem-se emoções, versos a derramar chuviscos de sagrado, concertos de verde, trânsitos de seiva, é a metamorfose da paisagem em palavras.

Herdámos Sintra, acordamos e adormecemos neste Paraíso que Salomão mandou a um rei de Portugal (Gil Vicente).


sábado, 9 de abril de 2011

DO SOBREIRO NA TERRA AO SOBREIRO NA TELA




Um olhar multifacetado sobre o quadro ‘O Sobreiro’ pintado por D. Carlos de Bragança em 1905. Quando a atenção se concentra no espaço bidimensional da tela, os olhos vivem a mais livre das aventuras: a obra abre-se a múltiplas interpretações, não alterando, porém, o carácter pela qual ela vale, consiste e comunica.

O passado é argila que o presente lavra
por capricho. Interminavelmente.
Jorge Luís Borges

1. O espectador ideal
Misteriosa como a vida, a obra de arte é sempre uma surpresa. Pintado em 1905 por um rei, D. Carlos de Bragança, o quadro de nome SOBREIRO é mais do que a cena silenciosa que agrada ao espectador. O prazer estético da primeira impressão é apenas o início de uma relação mais profunda. Quando a atenção se concentra no espaço bidimensional da tela, os olhos vivem a mais livre das aventuras: a obra abre-se a múltiplas interpretações (alguém disse que há tantos Hamlets quanto a melancolia dos seus leitores) porém, as diferentes leituras, não alteram o carácter pela qual ela vale, consiste e comunica.

José - Augusto França incluiu Sobreiro no livro intitulado 100 QUADROS DO SÉCULO XX. O texto que o apresenta contém informações sobre a já centenária obra e, recorrendo à fantasia, o douto historiador mostra ainda como uma visão poética a enriquece. As palavras que se seguem testemunham o fenómeno: olha-se para esta árvore enorme e torcida, de raízes brotando da terra ingrata, e é uma escultura de carne que se vê corpo poderoso, vermelho de pele, abaixo da cortiça que o veste pelo meio, como uma camisa que se despe pelos braços alçados. Num campo alentejano, solitário e silencioso sobreiro impressiona.

D. Carlos de Bragança pintou prospectivo e profético caminho atravessando o conjunto pictórico. Vem do fundo da tela, passa por um bosque onde tudo pode acontecer – até um encontro com o lobo dos contos infantis - passa lesto ao lado do velho sobreiro e, só termina, quando esbarra no limite oposto do quadro. Sobreiro, caminho e bosque interagem, e é na sequência dessa interacção, que tudo ganha sentido. Nesta paisagem de lógica aberta que verdade acontece? Caminho, bosque e sobreiro oferecem-se para metáfora ou o pintor teve só preocupações realistas?Entretanto, através dos poderes sensuais da pintura, nota-se na imagem do sobreiro, uma dualidade: a da sua realidade propriamente visível, árvore inclinada igual a tantas outras, e a da sua idealidade invisível, concepção diferenciadora que, desafiando interpretações, permite várias leituras. José - Augusto França, chamou-lheescultura de carne e a cortiça comparou-a a camisa que se despe. De acordo com a teoria de Umberto Eco, este é um bom exemplo do espectador ideal porque, ao observar a obra e ao discorrer sobre ela, também tenta criar… toma parte na obra.


2. Quando um sobreiro é protagonista
O sobreiro é uma árvore perfeita na ordem do imaginário. Mesmo em terrenos pobres e com condições climáticas adversas reproduz-se. Nenhuma árvore dá mais exigindo tão pouco, afirma o Engenheiro Silvicultor Vieira Natividade no livro SUBERICULTURA. Desconhece-se o motivo que levou o artista a escolher para protagonista do quadro um exemplar, de tronco tortuoso e ramo mutilado. Terá o sobreiro perdido a expressão altaneira e expansiva, pelos temporais sofridos, ou pelo peso da história que carrega?
Por ser assim árvore preciosa, tem a memória atulhada de factos. Uns contrariam, outros favorecem-lhe a sobrevivência. Se esquecermos os fósseis encontrados, a odisseia do sobreiro em Portugal, aquela que o tempo não apagou, remonta ao início da nacionalidade. São acontecimentos passados porém, repetem-se em cada geração. Fogos, abates clandestinos, extracção exagerada de cortiça, cortes na ramagem, doenças e pragas, sucedem-se no longínquo e no próximo. Já em 1310 D. Dinis exige que se não faça dano nos sobreirais. Alguns estragos são feitos por sede de lucro, outros por fome de pão. Nas cortes de Évora (1481-1482) D. João II ouve estes lamentos: vossos povos gemem de verem nascer a cortiça nos montes maninhos e desertos…e não ousam colhê-la nem se aproveitar dela por causa dos tratos e graves penas que por isso são postas. Estes e outros longínquos antecessores de D. Carlos reconheceram o valor do sobreiro e zelaram, melhor ou pior, pela sua conservação. No ano em que a tela foi pintada, Portugal exportou cerca de cinquenta toneladas de cortiça.Torcido, mutilado, inclinando-se sobre o caminho que lhe passa à beira, o sobreiro da tela atrai de imediato a atenção do observador. Grossas e onduladas raízes brotam da terra. Destas e do robusto tronco saem forças que se estendem pelos ramos do centro para a periferia. Adivinha-se pertinaz seiva percorrendo-o e transportando pacotes de energia. Quantos dos sobreiros do montado próximo, são “filhos” seus? Quantas glandes levadas pelos elementos por lá germinaram? Quantos gaios por ali as enterraram, quantas ficaram esquecidas e saíram da terra, altearam centímetro a centímetro, palmo a palmo?

3. Caminho em estado de hibernação funcional
Adivinha-se o artista esquecido dos negócios do reino, concentrado diante da tela em branco, com o propósito de povoá-la de formas. Considera, prevê, dá a primeira pincelada com fino gesto, outra se segue e outra e outra. O acto de criar, tal como as ideias de felicidade e de destino, aproximam-se do sagrado. Já o sobreiro está na tela inclinado sobre solitário caminho cujas marcas deixadas pelos dias vulgares, revelam que várias coreografias já passaram por ali.

Ao pôr-do-sol os bois regressam ao estábulo e os rebanhos ao redil. Cascos e rodados deixam marcas no caminho. Os chocalhos, seu tilintar metálico, a tagarelice dos pássaros que repetem todos os dias a mesma canção e outros sons perdidos, animam a paisagem. Pastor e boieiro arrastam-se, vidas de abstinência forçada, demasiado banais, quantas vezes no extremo limite do suportável. Outros sulcos mais além informam que a coreografia progride com novas cenas. Talvez sejam sinais deixados por velhinha curvada sob enorme molho de lenha, marcas de cão manco abandonado por caçadores, vestígios de cabra irrequieta.
Na tela o caminho mantém-se numa hibernação funcional. O que a realidade não pode, a evasão para a fantasia consegue: o caminho, galga o limite do quadro e conquista a intimidade de novos espaços. Elástico, ligeiro, sobrevoado por pássaros inventados, leva um propósito: procurar o lugar habitado por uma edição melhorada de homens e de mulheres.


sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

PAI DO NATAL, SERENÍSSIMA ALEGRIA





O Tempo Profano está prestes a retirar-se para solenemente permitir a entrada do Tempo Sagrado, isto é, Sua Singularidade visita o nosso planeta. Até o mais distraído sente o ruído visual e sonoro que acompanha esse momento tão especial. A imprensa já informou que o número de cartas, até ao momento enviadas, é o maior de sempre. Será da crise que os homens atravessam ou um maior conhecimento de Suas peculiaridades? Há pouco dei por mim a pensar em algo que me fez estremecer: O Pai do Natal assistiu à primeira noite de luar, conheceu a juventude do Sol, viu a primeira flor que rompeu da terra e esteve no nascimento da primeira célula. Fiquei a admirá-lo muito mais.

Antes de passar ao tema desta carta, solicitar obséquios, quero informá-lo que não acredito que seja velho e gordo, que tenha longas barbas brancas e se desloque num carro puxado a renas. O PAI DO NATAL é esbelto, imberbe e desloca-se pelo poder da energia que seu cérebro engendra. E ainda mais pressinto que a celebérrima estátua de Miguel Ângelo, DAVID, exposta numa praça em Florença, imita-o fielmente.



Como é que isso é possível? - Perguntam-me os que sabem que defendo esta tese.

É simples, certa noite VOSSA SERENÍSSIMA ALEGRIA entrou num sonho do artista e este esculpiu a famosa obra. Não será a Arte e tudo o que de mais belo se realiza na vida, resultado de um sonho?

Chegou o momento mais solene, o mais delicado desta missiva: encontrar uma palavra transparente, brilhante, incendiária, leve e pesada simultaneamente, vibrante. Encontrada, SABEDORIA é a palavra, eis o presente que solicito: faça chover sabedoria sobre a Terra para que:

O Homem não mais meta medo ao Homem, ninguém coma pão sem o partilhar, a vozearia não mais seja sobre defeitos, erros, azares alheios, mas sobre virtudes, decisões correctas e bem-estar.



Que todos os dias haja um alvorecer, odor a rosas, prados em flor, sabor a mel, aves a cantar na floresta e a riscar o nosso céu.

SALVE!

domingo, 19 de setembro de 2010

SINTRA, ESPELHO DO TEMPO, PEDE NOVAS METÁFORAS


Uma metáfora resulta da tensão entre dois termos, sendo por isso possível, obter um fecundo conjunto de combinações. Imitando um poeta persa, chamamos a Sintra, tal como ele chamou à Lua, o espelho do Tempo. A ideia de espelho atribui-lhe brilho e fragilidade, a ideia de Tempo, faz pensar que é muito antiga, carregada de história, de mitos, de poesia. Naturalmente, desta metáfora, decorre a questão: Que marcas, que imagens deste Tempo que é o nosso, mostrará o futuro?
O espírito de Sintra é frágil, raro, precioso. Transporta-nos à beira do êxtase, à paz sem palavras, mas é fácil pervertê-lo. Não assistimos ao seu desabrochar, mas estamos investidos da missão de favorecer a continuidade do desabrochamento. Não testemunhámos o afã dos habitantes de outrora, mas vivemos na terra que eles inventaram. O “archote” foi-nos confiado e, num presente que nada tem de plácido, está sempre algo para acontecer. Que projectos em gestão amadurecem? Que sonhos germinam?

O aroma selvagem dos bosques continuará a entrar pelas narinas e a chegar à alma, se os bosques existirem, o voo picado do falcão e as manobras que antecedem o pouso de uma águia serão espectáculo, se estes seres voadores percorrerem os ares, mulheres e homens amarão o pujante cenário natural e respeitá-lo-ão, se suas vidas não forem uma sequência monótona de injustiças e episódios falhados. Uma boa mulher cuja vida decorreu à sombra do Paço Real morreu sem o ter visitado. É preciso que a velha metáfora Sintra glorioso Éden se torne verdadeira, para a totalidade dos seus habitantes.

Sintra é o espaço ideal para abolir o Tempo, para viajar simultaneamente no sentido do passado e do futuro, do ser e do não ser. Respirava-se a frescura de tranquila manhã, num dia de encerramento do Paço da Vila. Olhávamos o monumento sentados num banco e, enquanto o corpo amolecia, rememoravam-se acontecimentos ali ocorridos. Eis que alguém começa a subir a escadaria. Abeirámo-nos para informar que o Paço estava encerrado, quando reconhecemos o visitante. Cabelos escorridos cortados a direito ao nível das orelhas, franja sobre a testa a um dedo de distância dos olhos expressivos e brejeiros, farta barba e, para culminar, sobre a camisa um belo e requintado colar, o mesmo da pintura que representa o casamento do Rei Venturoso com D. Leonor.



-Veio matar saudades a Sintra SENHOR DOM MANUEL? - Perguntámos.



- Venho a Sintra para meditar sobre o TEMPO - respondeu com naturalidade.


Íamos tentar colher pormenores sobre a meditação da real personagem, quando o ruído de um carro da G.N.R. que atravessava o largo, nos interrompeu. Os olhos ainda percorreram a escadaria mas… estava deserta. Em Sintra o sonho convive com a realidade.

domingo, 2 de maio de 2010

O SAPO TAMBÉM HABITA NUM VERSO DE POEMA

Encarados por nós de múltiplas formas, os anfíbios estão presentes em diversas facetas da actividade humana, entre as quais a literatura. Também habitam em versos de poema.

Na solidão do espaço, enxames de galáxias expandem-se e brilham. Na agitação da Terra, o Reino Animal, a mais bela e valiosa de todas as colecções, exibe-se. A reflexão concentra-se numa estrela e num animal: o Sol e o Sapo. O papel do Sol na vida da Terra justifica o chamamento mas, entre milhões de espécies vivas, como se justifica a escolha do Sapo para herói desta “aventura”?

As explicações são sempre incompletas:

A luz do Sol evoca-se na sua qualidade de fenómeno metafísico. Sempre com o Sapo no horizonte, deseja-se que derrame “lucidez” em todos os que, com vozes desafinadas maculam a imagem do delicado anfíbio que, como qualquer ser vivo, está permanentemente ocupado na resolução dos problemas básicos da vida, na selecção de melhores estratégias de sobrevivência. Procurar alimento em quantidade suficiente para a produção de energia, escolher o par para o acasalamento assegurando que a vida continua e defender-se de ameaças à integridade física, é o alto preço que o Sapo paga para viver. Da amiba ao ser humano, a procura do bem-estar ocupa todos os seres e, por isso, respeitar a vida, amá-la como coisa sagrada, produto de milhões de anos de evolução, é cada vez mais urgente.



A luz como metáfora surge das aspirações de racionalidade no convívio entre todos os seres. Os dois casos que se seguem, seleccionados ao acaso entre incontáveis, ilustram dois modos de proceder. No primeiro, um compositor e uma aranha são protagonistas. Claude Lévi-Strauss no livro OLHAR OUVIR LER refere curioso episódio. Informa que Chabanon, violinista, compositor e filósofo interessava-se por aranhas e tocava-lhes árias de violino para saber a que tipo de música se mostravam sensíveis. O segundo caso resume-se a uma informação sobre o Sapo, disponível numa enciclopédia. Quem procurar essa informação, deseja-se que não seja uma criança, lê: Género de batráquios anuros insectívoros, de aspecto repelente (…) Prestam grandes serviços destruindo insectos e milhares de pequenos animais nocivos, motivo por que não se lhes deve fazer mal, apesar do seu aspecto repelente. Naturalmente a mesma enciclopédia explica o significado de “repelente”: Que inspira nojo, aversão, odioso, repugnante. No grande concerto da sinfonia cósmica, não contribuirá o Sapo para a Beleza do conjunto?

É óbvio que nada do que respeita à Beleza é óbvio. Da Grécia Antiga ao século XXI a ideia de Beleza nunca foi algo de imutável, nem de absoluto. Modelos de Beleza variaram consoante um período histórico e uma região e, por vezes, até numa mesma época. Hesíodo narra que, nas bodas de Cadmo e Harmonia, as musas cantaram em honra dos esposos os versos que se seguem: Quem é belo é querido, quem não é belo não é querido. David Hume nos ENSAIOS MORAIS, POLÍTICOS E LITERÁRIOS revela a sua opinião sobre tão delicado tema: A Beleza não é uma qualidade das coisas em si mesmas: só existe na mente que as contempla e cada mente percebe uma Beleza diferente (…) cada um deveria satisfazer-se com o seu sentimento sem pretender regular o dos outros. Voltaire, no DICIONÁRIO FILOSÓFICO escreve: Perguntai a um sapo o que é a Beleza o verdadeiro belo o to kalon. Responder-vos-á que consiste na sua mulher com seus belos olhos redondos que se projectam para fora da pequena cabeça, o pescoço grosso e achatado, o ventre verde e as costas castanhas.



Presentemente não existe um ideal único de Beleza. Um investigador do futuro não poderá identificar o ideal estético a partir do século XX. A HISTÓRIA DA BELEZA dirigida por Umberto Eco termina com uma afirmação que espelha a realidade actual: O tal investigador deverá render-se perante a orgia da tolerância, diante do sincretismo total, do absoluto e imparável politeísmo da Beleza. Não será o templo da Beleza o justo coração do Homem?


A poesia é mais que uma meditação delicada e a ciência não é a única via que orienta o modo de conviver com o mundo natural. Poesia e Ciência nasceram do mito porém, a Ciência não sabe lidar com o “sagrado”. Se os conhecimentos científicos existentes sobre o Sapo são insubstituíveis, a literatura que o menciona pode dar um bom contributo para o modo de pensá-lo e aceitá-lo, o que é importante para a sua conservação. Virgínia Woolf, Teixeira de Pascoaes, Rui Belo e Breton são escritores, entre muitos outros, que incluíram o curioso anfíbio na obra que escreveram. Ou buscando a luz do Sol, ou saboreando uma chuvada, ora saltando, ora cantando, ou ainda envolvido nos trabalhos da conservação da sua espécie na Terra, cada autor, lembra que há um animal chamado Sapo, que anda pelos campos, assoberbado, empenhado na difícil tarefa de viver. Eis como ele entra na literatura:

Virgínia Woolf, escreveu aquele que talvez seja o seu melhor romance, AS ONDAS. Marguerite Yourcenar, sua tradutora francesa, classifica-o de “narrativa musical”e, compara os monólogos interiores à Arte da Fuga de Bach. Ora, curiosamente, o Sapo ocupa no romance, um singelo espaço, embora não seja como cantor. A romancista inglesa atenta aos sons, a certa altura escreve: Ouve! É o salto de um enorme sapo na vegetação rasteira; algumas dezenas de páginas passam, e o simpático animal volta à cena: semelhante a um sapo no seu buraco, acolho os acontecimentos com perfeita frieza.



Teixeira de Pascoaes, é um observador atento da Natureza. Certa noite, entre os gemidos do vento e tristes pensamentos, o canto de um Sapo fez a diferença: Nos pinheirais o vento geme e chora / E os sapos cantam / E ouço a noite a chorar no meu jardim.

Rui Belo, melancolicamente, inventa caminhos no labirinto do tempo. No poema INVOCAÇÃO entre solidão, sombras e gente que não sente qualquer necessidade de saber, há a esperança de que perto ande pelo ar o perfume da flor do castanheiro e há também um alegre Sapo. Nunca aspirei a mais do que ao repouso / nas regiões onde em fins de Janeiro /já o inverno lentamente se despede / e o sapo satisfeito pela chuva /oculta a cabeleira de uma nuvem

André Breton, revolve a substância poética. Na poesia surrealista, fluxo de um pensamento que gera lances imprevistos, poderá o absurdo tornar-se racional? Por que não há-de a linguagem perseguir algo, mesmo que acabe por cair no vazio? No poema FATA MORGANA o Sapo de Breton desempenha estranha missão: Uf o lagarto passou sem me ver / (…) E o ovo religioso do galo / Continua a ser religiosamente chocado pelo sapo / Da velha varanda segura apenas por um fio d´hera /Acontece o olhar errante sobre as adormecidas águas




David Attenborough, no livro A VIDA NA TERRA lembra: Há cerca de 350 milhões de anos, num pântano de água doce, teve lugar um episódio que iria ser decisivo na história da vida: alguns “peixes”começaram a arrastar-se para fora da água e tornaram-se assim os primeiros vertebrados a colonizar a Terra (…) esses peixes tiveram de resolver dois problemas: como locomover-se fora de água e como obter oxigénio do ar.


Ora a pouco quilómetros do Oceano, onde há 200 milhões de anos passeavam dinossáurios, hoje vivem vários sapos. Em manhãs de Primavera, nunca uma visita ao lugar, deixou frustrado o desejo de encontrar um ou mais. O campo é fértil, levemente ondulado e atravessado por pequeno riacho. Como seria há duzentos milhões de anos!?

Os cheiros a erva fresca e a folha que apodrece misturavam-se. Numa qualquer manhã de Abril, a surpresa de descobrir um exemplar tardava. Entretanto o espectáculo da banalidade de situações centenas de vezes observadas, não se perdia: a neblina matinal dissipava-se, um gaio localizava o alimento que guardara no Outono, aves poisavam e o descair da asa com o fim do voo era gracioso, uma águia cortava o espaço aéreo. Vista, ouvido e olfacto registavam um caudal de impressões quando, já um pouco tardiamente, a persistência foi premiada. Perto do riacho um sapo tomava a sua refeição matinal. Os binóculos permitiam observar o banquete sem o perturbar: caçara uma minhoca e segurava uma das extremidades com a boca e cuidadosamente raspava-lhe o corpo com as patas dianteiras removendo a terra que se agarrava ao corpo da vítima. Quando tudo estava a seu contento a refeição consumou-se e, curiosamente, ao engolir piscava os olhos, fenómeno que certamente ajudava o processo.

Esta foi a mais interessante visita realizada àquele lugar onde há 200 milhões de anos passeavam dinossáurios e hoje, uma pacata e activa população de sapos habita.

domingo, 14 de março de 2010

UM MODO DE DISCORRER SOBRE O ESPÍRITO DE SINTRA


Para sentir o espírito de um lugar ou reflectir sobre ele, não há como conhecer-lhe a história, isto é, saber como o local foi outrora. Incorpóreo mas real, simultaneamente inconfundível e vago, o espírito de cada lugar resultará de uma complexa teia que o Tempo, a Terra e o Homem, engenhosamente vêm tecendo.

O Tempo, labirinto de sentidos, é enigmático para o filósofo, aquilo que sabemos quando ninguém no-lo pergunta mas não sabemos quando o pretendemos explicar (1), simplificado por Fernando Pessoa, O presente é todo o passado e todo o futuro, simbiótico no 1º acto do Parsifal, Vê meu filho, aqui o espaço e o tempo se confundem, premonitório para Jesus de Nazaré, não conheceis os sinais dos tempos?

A Terra é a morada comum.

O Homem, é o ser da constante dedicação à busca do alimento, da sexualidade e do trabalho mas, se movido por irresistível vontade de indagar, descobre um universo de raros fenómenos, para lá do metabolismo e da reprodução. Vive então a aventura de contemplar, de pensar, de criar.

O Tempo, a Terra e o Homem serão os criadores do espírito de um lugar.

Pascal considera o género humano um mesmo homem que subsiste e aprende continuamente, qual processo interminável e laborioso que aplicado a Sintra foi gerador das preciosidades que herdámos e conservamos. São, entre outras, relíquias arqueológicas, monumentos, pinturas e literatura que o local inspirou. Alimentam o espírito do lugar, único nas singularidades que acumula, igual a todos na fragilidade que o marca. Século após século, o Homem domina-o, e dominando, mantém-lhe a essência ou adultera-a.




Durante séculos, em Sintra, a Natureza desempenhou o papel de protagonista. De que modo? Que peso teve nos empreendimentos realizados? Como a apresentam os textos antigos?

Quem deambular pela Serra encontrará conventos nos lugares mais escondidos da floresta. Os muros de ameias do antiquíssimo Castelo dos Mouros, sobranceiro à Vila, ajustam-se aos cumes dos montes e estendem-se por eles. Palácios, quintas solarengas e vivendas apalaçadas, erguem-se entre luxuriante vegetação. Casas rústicas e aldeias saloias, espalharam-se pelas várzeas férteis e de abundantes águas. Tudo fazia parte integrante da paisagem, através de um apropriado enquadramento no ambiente natural. Em Sintra o património natural e o património cultural, formaram uma unidade.

Se mesmo hoje não é fácil evocar Sintra sem lhe associar a Natureza, no passado essa particularidade assumiu formas caprichosas. Textos antiquíssimos, outros mais recentes, esboçam imagens de Sintra no pretérito. Alguns deixam adivinhar vivências, sentimentos e preferências. O texto que se segue do século X, do geógrafo árabe Al-Bacr, tem o seu valor acrescido pela escassez de referências anteriores à Nacionalidade. O autor que aprecia a fecundidade da terra e do mar e a salubridade do ar, informa: (Sintra) ... é uma das vilas que dependem de Lisboa no Andaluz, nas proximidades do mar. Está permanentemente mergulhada em bruma que se não dissipa. O seu clima é são e os habitantes duram longo tempo. Tem dois castelos de extrema solidez. A vila está a cerca de uma milha do mar (...) A região de Sintra é uma das regiões onde as maçãs são mais abundantes. Esses frutos atingem uma tal espessura que alguns chegam a ter quatro palmos de circunferência. Acontece o mesmo com as pêras. Na Serra de Sintra crescem violetas selvagens. Da costa vizinha extrai-se âmbar excelente.

Cada vez que se trata de pensar Sintra em épocas remotas, há um trecho que é citação certa. Trata-se da carta atribuída a Osberno, cruzado inglês que em 1147 participou na operação de conquista da cidade de Lisboa aos mouros. Testemunha ocular dos factos que descreve, o cruzado junta ainda outras informações. É aí que Sintra aparece e, curiosamente, entre o real e o mito

Fica-lhe próximo (de Lisboa) o castelo de Sintra,(...) no qual há uma fonte puríssima, cujas águas, a quem as bebe, dizem, abrandam a tosse e a tísica; por isso quando os naturais dali ouvem tossir alguém logo depreendem que é um estranho(...). Nos seus pastos as éguas reproduzem-se com admirável fecundidade por quanto só com aspirar as auras concebem do vento , e depois, sequiosas, têm coito com os cavalos. Desta forma se casam com o sopro das auras.

O cronista Damião de Góis também é citação indispensável. Nele, e noutras fontes, avaliamos como em Sintra a Natureza condicionou o evoluir histórico. Lugar de bosques, brumas e silêncios, espaço predilecto de caçadas, atraiu reis e, com eles, uma multidão. Procuravam sossego, diversão e as belezas do lugar. Longe do bulício de Lisboa, recuperavam energias e viviam a situação de apaziguamento, que a Natureza proporciona.

(D. Manuel vem) a Symtra ter o Verãm, por ser hú dos lugares da Europa mais frescos, & alegre para qualquer Rei, Principe & senhor poder nelle passar tal têpo,... hà nella muita caça de veado, & outras alimárias, & sobre tudo muitas...boas frutas (...) & as milhores fontes dagoa (...) às quaes cousas todas acrescenta(...) hos magnificos paços, que no mesmo lugar hos reis tem, para seu aposento,& dos que cõelles vam.(2)
No último quartel do século XVIII e em inícios do século XIX Sintra desempenhou um papel importantíssimo, desta vez na produção artística. Uma pleíade de artistas, encantou-se com as belezas da região, narrou-as, comentou-as e descreveu as emoções que acompanharam a contemplação dos lugares. Muitos, confessaram-se incapazes de descrever todos os encantos que presenciavam. Byron é um exemplo: Eis Sintra e o seu Éden resplandecente surgindo num labirinto multicolor de montes e vales. Ai de mim, que não sei pintar nem descrever metade sequer das maravilhas em que os meus olhos se deleitam. Nasceu assim, uma vasta e preciosa obra, que veio enriquecer, o espírito de Sintra.



É neste espaço que hoje vivemos. Aqui fazemos e desfazemos, limpamos e poluímos, aplacamos e avivamos, pranteamos e festejamos. O que ficar desta aventura merecerá os aplausos e as censuras dos vindouros. Eles julgarão o nosso tempo, tal como hoje avaliamos o passado e é importante que assim se faça, para que o fluir dos homens e das ideias, se molde à magia deste lugar e lhe respeite a essência.

Como muito bem disse o poeta o presente é todo o passado e todo o futuro. Em Sintra o passado infiltra-se no quotidiano de cada um. No mínimo, vive-se à sombra do castelo e na vizinhança dos monumentos. O presente também é futuro; há a nobre missão de acautelar e aumentar a herança que recebemos. De que modo? Vítor Serrão está cheio de sabedoria quando apresenta o seu ponto de vista : torna-se imperioso que o crescimento rime com qualidade, que novas construções rimem com interesse arquitectónico, que futuros arranjos rimem com enquadramento cenográfico.

Há lugares que têm espírito e Sintra é um deles.

(1) WITTGENSTEIN (1967). Philosophische Untersuchungen. Frankfurt A. M., p. 61

(2) VITOR SERRÃO (1989). Sintra. Editorial Presença, Lisboa, p.96

domingo, 28 de fevereiro de 2010

OLHOS DE POETA


Escreve-se sobre a relação da sociedade humana com a NATUREZA, num ritmo proporcional ao desencanto sempre crescente, provocado pela degradação do ambiente. Mas esse “desencanto” obriga a esforços concertados e à descoberta de novos possíveis.

Edgar Morin afirma que quando olhamos o estado do planeta “verificamos perigos mortais para o conjunto da humanidade (armas nucleares, ameaças à biosfera) e ao mesmo tempo probabilidades de salvar a humanidade do perigo a partir da própria consciência do perigo”.

Residirá nesta convergência de destinos a responsabilidade telúrica do HOMEM ?

Trata-se de construir uma consciência ambiental mais sentida, concreta e inovadora e, se muito já foi pensado, ainda não se deu o devido relevo ao valor de mensagens provenientes de certos universos, humanismo, estética e religião, entre outros.

A poesia, neste contexto ocupa um lugar privilegiado. Baudelaire gostaria de ter convencido os seus contemporâneos que a poesia é tão importante como o pão. Não indo tão longe, é lícito, porém, colocar a questão: se a sociedade humana achasse a NATUREZA com OLHOS DE POETA, a convivência entre essa e outra não seria mais sadia?


Blocos habitacionais, fios eléctricos, canos, esgotos, lixos, transformam a paisagem e tornaram-na muito estranha. Longe vai o tempo em que o sagrado se colava à NATUREZA, que “saída da mão dos deuses” impressionava pelo aspecto, variedade dos fenómenos e incapacidade de os entender. Se porém os comportamentos assumidos pelos homens das sociedades primitivas e arcaicas desapareceram com a História, hoje, ainda encontramos nos poetas antigos valores, reminiscências de experiências passadas.

Fernando Pessoa é um exemplo bem significativo.

Amar, ver, ouvir, comover, são palavras que o seu heterónimo Alberto Caeiro dispõe para exprimir a intimidade existente entre ele e o mundo natural.

Aprecie-se:

Aquela Senhora tem um piano
Que é agradável mas não é o correr dos rios
Nem o murmúrio que as árvores fazem
Para que é preciso ter um piano?
O melhor é ter ouvidos
E amar a Natureza


Mas saberá o poeta porque ama a NATUREZA?

Escreveu ele:

Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é
Mas porque a amo, e amo-a por isso
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama nem o que é amar
Amar é a eterna inocência


Se Fernando Pessoa não sabe porque ama a NATUREZA o leitor pode descobrir:

Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado

……………………………
No meu prato que mistura de Natureza
As minhas irmãs as plantas
As companheiras das fontes, as santas
A quem ninguém reza

……………………………
“…oiço passar o vento
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido



O poeta, que se considera “um animal que a Natureza produziu”, caracteriza o amor que dedica ao universo natural. Afirma ele:

Quando eu não te tinha
Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo
Agora amo a Natureza
Como um monge calmo à Virgem Maria
Religiosamente, a meu modo, como dantes,
Mas de outra maneira mais comovida e próxima
Vejo melhor os rios quando vou contigo
Pelos campos
Sentado a teu lado reparando nas nuvens
Reparo nelas melhor


Nos poetas encontramos memória de práticas passadas, exaltação de antigos valores e quem olhar a NATUREZA com OLHOS DE POETA encanta-se e protege-a.