domingo, 31 de janeiro de 2010

Quando o Cabo da Roca foi o Centro do Universo






É do mar de Sintra que melhor se percebe
A vastidão impressionante, soberba no
Seu turbilhão de formas e de cores, desse
Paraíso de bosques, silêncio e brumas
.
VITOR SERRÃO


Mais cedo ou mais tarde, antes que o Sol caia no horizonte, um FALCÃO vai aparecer. Com o mar em frente o pensamento repousa na serena espera. Não há preocupações ambientais, não há teologias, há um presente sem peso. Escapa-se ao TEMPO, frente ao mar de Sintra, que se estende ao Sol, animado de oscilações e cintilações. Quem exala uma alma em quem? É a paisagem líquida que exala alma no observador ou é o observador que exala alma na paisagem líquida?

Numa qualquer manhã, sob um céu passivo, tudo possuía excesso de sentido. Não se queixa de uma existência monótona quem procura os surpreendentes espectáculos que a vida na TERRA proporciona. O olhar ia do mar à rocha quase a prumo - um desnível de cerca de 140 metros - e voltava ao mar para procurar na superfície líquida, o presumível lugar da misteriosa ilha de Londobris. Ptolomeu situa-a diante do Promontório Magno, o Cabo da Roca, e afirma que Lusitanos em fuga, desalojados dos Montes Hermínios, aí procuraram refúgio. Terá soçobrado Londobris durante violento sismo ou só existiu na fantasia do astrónomo? Entretanto um bando de irrequietas gaivotas animava o espaço aéreo. Irene Lisboa tem a sensação de que o canto das aves dilata o espaço, talvez. Sobrevoavam e davam movimento ao lugar mais ocidental da Europa (9º 30´ long. W).


A luz caindo do alto, a brisa que chegava com odor a mar e os gritos das gaivotas activavam a memória de recente espectáculo e, também, a memória de antigas leituras que têm por cenário esta orla costeira. A bela arméria, que ninguém planta, espécie endémica do Cabo da Roca, que tocada pelo Sol rutilava, tinha ficado para trás, mas a súbita e impressionante aparição do vasto espaço por onde ela se espalhava, perdurava. A memória de antigas leituras que poeticamente narram sugestivas lendas activava a fantasia, e povoava o lugar de estranhos seres: sereias cantando melodiosamente, os correspondentes masculinos, metade homem metade peixe nadando preguiçosamente ou descansando sobre as rochas e, por aqui e por ali, os tritões que Damião de Góis fantasiou.

Da foz da Ribeira do Falcão, no termo Norte do corpo de Sintra, a costa, desdobra-se em falésias que crescem à medida que se aproximam do focinho da Roca. As vagas batidas pelo vento tropeçam nas arribas e da erosão, resultam grandes e vistosas rochas que desagregadas constroem recantos labirínticos. A estabilidade arquitectónica de certos espaços é periclitante. Recessos onde um FALCÃO possa nidificar e criar os filhotes, sobejam.

Quando o pensamento divagava sobre o privilégio dos falcões de Frederico II que eram tratados por poetas, e sobre a Beleza que começa por ser uma experiência íntima, um olhar distraído varreu o céu e descobriu lá bem no alto, um ponto negro. Seria o aguardado FALCÃO?


Era um FALCÃO, já evoluía pelo espaço, já não era apenas uma ponto a grande altura. Que ostentação, sentia-se em casa. Subitamente o voo alterou-se, tornou-se agoirento, perseverante, centrado num terreno próximo, coberto de vegetação onde coelhos e perdizes habitam. O FALCÃO não precisou de Mestre para, exprimir o invisível conteúdo dos seus propósitos. Caiu do alto como uma seta sobre certa perdiz mas a agilidade desta foi o seu fracasso. Parado a um palmo do chão voltou a subir e, pouco tempo passado, outra investida se seguiu e desta vez com êxito, certamente. Ele mantinha-se em terra, não era visto mas adivinhava-se a cena. Quando voltou a sobrevoar aquele mar de Sintra era um FALCÃO triunfante.

O espaço onde a arméria vicejava pedia nova visita. Crescem sozinhas e sem cuidados. A Beleza do conjunto fazia esquecer que cada flor é a manifestação externa, das forças interiores da planta a que pertence e a interferência das forças do ambiente: exposição ao vento, posição dominante do Sol, expansão do grupo. Rudolf Arnheim declara num misto de graça e de conhecimento que o Homem sem corar, contempla o órgão sexual da planta, desavergonhadamente exibido e impudicamente colorido, e tão longe vai na sua má interpretação que se regozija em ver na flor pureza do que não tem função definida.

Naquele dia um triunfante FALCÃO e um conjunto de belas e delicadas armérias fizeram do Cabo da Roca o centro do Universo.

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