domingo, 10 de janeiro de 2010

Jesus de Nazaré provavelmente Poeta (III)


Pelos Caminhos da Palestina

O Homem possui a Natureza e a Natureza possui o Homem. O Homem recebe o sopro do espírito dos lugares e com ele, lança-se na vida, atira-se em todos os sentidos. Entre o ânimo do bem-sucedido e o desânimo do que caminha como “cão sem dono”, há o que baloiça de cansaço. Uns e outros adensam o espírito do lugar e é por isso que cada geração, para o bem e para o mal, deixa a sua marca no cenário natural que habita.

A Palestina é uma pequeníssima porção do planeta que milénios de história tornaram grande. À faixa de terra quase completa-mente plana que se debruça sobre a costa do Mediterrâneo oriental segue-se um conjunto de formas, umas mais volumosas do que outras, cujos cumes, uns aguçados outros ondulados, adornam a paisagem. O Rio Jordão cruza o espaço e, depois de passar pelo Lago Tiberíades, também chamado Mar da Galileia, vai lançar-se num outro mar que possui a mais elevada concen-tração de sal do mundo, o Mar Morto. Vespasiano, quando no ano 68 e. c. caminha para Jerusalém, passa por ele e, duvidando do que se dizia sobre a sua singularidade, manda lançar no fundo das águas homens de mãos amarradas. Para seu espanto, voltam à superfície. Sujeito a forte evaporação, este mar interior tem uma salinidade tão elevada, que não é possível desenvolver qualquer forma de vida no seu interior.



A faixa de terra plana sobre a costa do Mediterrâneo, os oásis e os vales fluviais, são alternativa às areias dos desertos e às rochas. Os caminhos alongam-se, ondulam, acomodam-se às características do terreno. Por eles, anda Jesus de Nazaré. Os escritores que publicaram a sua oralidade desenham-lhe a imagem de persistente e infatigável caminheiro. Imagine-se a poética daquela jovem figura envolta em ampla túnica, sandálias nos pés, num imparável vaivém, seguido, rodeado ou aguardado por homens e mulheres, alguns semelhantes a personagens de pesadelos.

Dirige-se ao melódico Rio Jordão. As veredas e os recantos sucedem-se. Ora luz ora sombra, paira pelo ar o cheiro da flor que ninguém semeou, ou da seiva da árvore do caminho. Talvez o Mestre pense na energia que fez crescer as pequenas sementes que estiveram na origem de uma e de outra. Um festival de formas, de luz, de cor oferece-se ao olhar. Já o rio se avista ao longe, já sente a frescura do ar, já a água lhe refresca os pés. Paira uma calma alegria pelo ar. Uma voz, a de João Batista, abafa o rumorejar do rio: Eu careço de ser baptizado por ti e vens tu a mim?

Assim nos convém cumprir toda a justiça, responde-lhe o Mestre.

A odisseia está em marcha, o Rio Jordão apaga-se na curva, os sonhos estão na estrada. Cada passo que dá, é mais um segmento da sinuosa linha que vai dar a Jerusalém. No Templo, o Mestre conhecerá uma mulher. Não há encontro marcado, mas é preciso estar lá na hora certa.

Caminha para Nazaré, humilde aldeia onde foi criado, tão humilde que não vem mencionada na Bíblia Hebraica, nem na literatura rabínica, nem mesmo na vasta obra de Josefo, que no ano 67 do primeiro século foi governador e general da Galileia. Jesus quase ouvia a notícia do nascimento deste importante historiador, da tribo de Levi ocorrido em Jerusalém no ano 37. Na Sinagoga de Nazaré, Jesus, abre o Livro do Profeta Isaías e lê: O Espírito do Senhor, é sobre mim, pois que me ungiu para evangelizar os pobres, enviou-me a curar os quebrantados de coração, a apregoar a liberdade aos cativos a pôr em liberdade os oprimidos. Fecha o livro, comenta a leitura e deixa o auditório perplexo. Não é este o filho de José? Sussurram alguns.



O coração da Palestina vibra a um ritmo desusado, aquele jovem sonhador pisa velhos caminhos que ganham novo espírito. Move-o uma Força irreconhecível, não descansa quem quer alegrar o mundo e, para isso, só trazendo o fogo do céu para a Terra. Deixa Nazaré onde foi criado e desce até Cafarnaum junto ao Mar da Galileia. Os habitantes da região vivem da agricultura e da pesca. Josefo, no livro GUERRA informa que por ali cresciam nogueiras que precisavam de um clima particularmente frio … palmeiras que necessitavam de calor, bem como figueiras e oliveiras que precisavam de um clima mais ameno… uvas e os figos. Com o mar ali, Jesus pode entrar numa embarcação, ouvir o bater compassado dos remos, apreciar a luz que treme nas águas, assistir à faina da pesca. Curiosamente em 1985 depois de um Inverno muito seco, membros do Kibutz de Ginosar situado a cerca de dois quilómetros da antiga Magdala, descobrem uma modesta embarcação do primeiro século. Há quem goste de pensar: Será o barquinho de Pedro?

Cresce o número dos que procuram o Mestre, dos que aguardam a sua passagem, dos que o seguem, dos que inventam processos para o ver melhor, para tocar-lhe. Aquilo já não é uma caminhada até Jerusalém, antes parece, uma coreografia, uma dança de expressão, onde homens e mulheres revelam sentimentos. Acu-mulam-se os movimentos. Quem sabe se uma música os acompanha? Aristóteles, referindo-se a pensadores que o precederam escreveu um dia: Dizem eles, quando o Sol e a Lua, e todos os astros, que são tão grandes em número e em tamanho, se movem com um movimento tão rápido como não haviam de produzir um som imensamente grande … o som produzido pelo movimento circular dos astros é uma harmonia. Contudo, uma vez que parece injustificável que não ouçamos esta música, eles explicam isto dizendo que o som está em nossos ouvidos desde o momento do nascimento e é assim indiscernível…o que acontece aos caldeireiros que estão tão acostumados ao barulho da forja que já não lhes faz qualquer diferença.

Bartimeu, o cego, mendiga à beira do caminho. Talvez não ouça o som harmónico do movimento dos astros, embora possua ouvidos bem apurados. Distingue o canto da ave, a canção das águas, o restolhar das folhas, a respiração dos montes, a brisa que o toca. Apercebe-se de um coro de vozes que se aproxima. É informado que passa o Mestre. Implora-lhe misericórdia. Misericórdia concedida junta-se ao grupo e segue-o. Avançam, encurta-se a distância que os separa do Templo. Do outro lado do monte um grupo de Mães aparece. Sonham com uma vida melhor para os filhos que têm ao colo. Interrompem o movimento de Jesus e pedem-lhe que toque nos seus meninos. Ele, tomando-os nos seus braços e impondo-lhes as mãos abençoou-os. Agradecidos, os olhos, dizem mais que muitas palavras.



Quando o cenário é o interior de uma casa onde Jesus de Nazaré, presença agradável, é convidado de honra, o movimento fica lento, descontraído. Algumas cenas de interior são muito belas, a que se segue é uma delas: Em casa de Simão, o leproso, aproximou-se dele uma mulher com um vaso de alabastro, com um unguento de grande valor, e derramou-lho sobre a cabeça, quando ele estava sentado à mesa. Os presentes agitam-se, um rumor de vozes enche a sala, cada um tece a sua teia.

Jerusalém aproxima-se. No Templo o Mestre conhecerá uma mulher. Não há encontro marcado mas é preciso estar lá na hora certa. A marcha, que prossegue, é interrompida por estranhas personagens. São náufragos de grandes tempestades, para quem o sol é sempre baço. O relato bíblico descreve a cena: Entrando numa certa aldeia saíram-lhe ao encontro dez homens leprosos os quais pararam de longe … dizendo: Jesus, Mestre tem misericórdia de nós. É o flagelo da lepra, que viver o dos leprosos! A misericórdia é concedida aos dez mas apenas um, volta para agradecer a bênção.

Dos ajuntamentos sempre sai alguém para a ribalta do futuro. O episódio tem graça. Jesus de Nazaré está numa das cidades mais antigas do mundo. Jericó, situada a 16 quilómetros a noroeste do Mar Morto, já era habitada no II milénio a.e.c. É um oásis alimentado por uma nascente perpétua. Hoje a cidade chama-se Tel el Sultan sendo a palavra tel um cômoro formado pela acumulação sucessiva de povoamentos. Jesus passa por uma rua arrastando consigo numeroso grupo. Alguém de baixa estatura não O con-segue ver e, por isso, corre, corre, até tomar a dianteira do ajun-tamento que flui lentamente. Sobe a uma figueira e aguarda. Qual não é espanto do pequeno homem empoleirado na árvore, quando Jesus pára em frente dele e diz-lhe: Zaqueu desce, hoje vou ficar na tua casa. O Evangelho de Lucas informa que Zaqueu era chefe dos publicanos, profissão muito criticada que gerava desconfianças, melhor dizendo, ele era um homem corrupto. O relato bíblico informa ainda, que o pequeno homem dá um grande passo: promete restituir o que havia roubado e ainda promete dar avultadas quantias aos pobres. Terá cumprido a promessa?

Já se avista a Cidade Santa, onde muitos acreditam que habita a presença divina. Construída sobre colinas está cercada de ravinas e muralhas. Entre o ângulo Noroeste da Muralha e o Monte Escope há pomares e hortas, informa Josefo . O Mestre dirige-se para o Templo, por velhíssimas ruas. Ele sabe que as tempestades que se geram no Mar da Galileia são bem mais fáceis de acalmar do que as tempestades que se geram naquele Templo que, do alto, impressiona o mais indiferente. Muitos contribuíram para que Deus tivesse aquela digna morada. Monumento de tamanha beleza, construído em pedra de um branco resplandecente, é uma fortaleza. A espiritualidade da grande religião tem ali um corpo. Salomão sobre outro Templo que naquele lugar edificou, o que foi destruído por Nabucodonosor no ano 586 a.e.c. teve este desabafo: Mas na verdade habitaria Deus na terra? Eis que os céus, e até o céu dos céus te não poderiam conter quanto menos esta casa que eu tenho edificado. Herodes, embora tenha ordenado que os sacerdotes aprendessem o ofício de canteiro para que os leigos não entrassem nas áreas mais sagradas, não teria pensamentos com meandros tão subtis.

Alguma coisa está para acontecer. Naquele dia o autor do Evangelho de João informa que, vindo Jesus do Monte das Oliveiras pela manhã cedo tornou para o templo e todo o povo vinha ter com ele e sentando-se os ensinava. Eis que enquanto assim estava sentado a ensinar, dirige-se para Ele um grupo formado por escribas, fariseus e uma mulher. Alguém está a faltar neste grupo! Um rumor das vozes anuncia que estão perto.


Deve ter sido um fariseu o primeiro a falar, eles tinham fama de conhecer as leis ancestrais com mais precisão que ninguém. Colocando a mulher no meio diz: Mestre, esta mulher foi apanhada, no próprio acto, adulterando, e na lei nos mandou Moisés que as tais sejam apedrejadas. Tu pois que dizes? O relato evangélico informa que Jesus inclinando-se escrevia com o dedo no chão. Entretanto, como diria o poeta, os céus sustêm a respiração. Jesus de Nazaré endireita-se e diz estas perduráveis palavras: Aquele que dentre vós está sem pecado seja o primeiro que atire pedra contra ela. Volta a inclinar-se e continua a escrever sobre a terra. Reina pesado silêncio. Começando pelos mais velhos, escribas e fariseus, um a um, abandonam o lugar. Fica o Mestre e a mulher.

Mulher, onde estão aqueles teus acusadores? Ninguém te condenou? Pergunta Jesus.

Ninguém, Senhor, responde a mulher.

Nem eu também te condeno; vai-te e não peques mais.

Jesus de Nazaré dá rosto humano ao Deus invisível.

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