domingo, 25 de outubro de 2009

O Futuro é Biológica e Espiritualmente Aberto (II)

2. Onde moram os Deuses






Os deuses não morreram: O que morreu
foi a nossa visão deles. Não se foram:
deixámos de os ver. Ou fechámos os olhos,
ou entre eles e nós uma névoa qualquer se entremeteu.
Subsistem, vivem como viveram, com a mesma
divindade e a mesma calma.
Ricardo Reis


Aristóteles (384-322 a.C.), o mais importante filósofo e cientista da Antiguidade, cujos textos influenciaram o pensamento cosmológico medieval, situa a Terra imóvel no centro do Universo. O céu, imutável e majestoso, lugar plausível para a morada dos deuses, é o espaço da perfeição e do poder. Na obra DOS Céus escreveu:


...A Terra não se move, nem se localiza em mais nenhum lado a não ser no centro...Todos os homens têm uma concepção dos deuses e todos atribuem o lugar mais elevado ao divino, tanto bárbaros como Helenos... Ao longo de todo o tempo passado, de acordo com registos apontados de geração em geração, não encontramos vestígios de mudança nem no conjunto do céu exterior nem em nenhuma das suas partes.


O tempo flui, passam séculos e milénios e em 1965, Arno Penzias e Robert Wilson descobrem uma “luz” fraca, muito fria, que preenche todo o espaço do Universo. O astrofísico George Gamow, trinta anos antes, já a havia anunciado. As estrelas estão mergulhadas nessa luz originária cuja intensidade e temperatura vêm diminuindo com a expansão do Universo. Entre a imutabilidade do céu de Aristóteles e a detecção desta radiação fóssil, crescem ideias que tentam explicar a origem e destino do Homem, a origem e estrutura do Universo. Tudo se resume à saga de substituir teoria por teoria. A Ciência não sai molestada desta dança de conjecturas, porque o seu objectivo é atingir a sempre fugidia “verdade absoluta” mas o ser humano, que já inscrevera num quadro coerente as acções práticas e espirituais, que já tornara inteligível o cenário onde decorre a aventura da vida, que já encontrara explicações satisfatórias para os fenómenos que observa na Natureza, cada vez que uma alteração ocorre, ressente-se. Cosmologia, teologia e moralidade estão indelevelmente entrelaçadas e as teorias substituindo-se umas às outras, alteram valores que dão sentido e coerência à vida da família humana.


Desde Copérnico (1473-1543) sabe-se que a Terra não ocupa o centro do Universo nem sequer o centro do sistema solar. Ao expulsar a Terra de uma posição central e com ela o Homem, Copérnico revela um facto, real, não apresenta uma nova filosofia nem emite juízos, contudo a revelação gera escândalo, e ameaça a doutrina da Igreja. Não é raro fazer-se humor acerca daquilo que, de certo modo, é assustador. Lutero zomba de Copérnico e chama-lhe o tonto que quer virar de pernas para o ar toda a ciência.


Thomas Kuhn inclui no sexto capítulo do livro A Revolução Copernicana dois poemas que condenam o exílio da Terra nas trevas do firmamento. Conservantismo cosmológico, endeusamento das fontes clássicas do conhecimento, estão na origem dessas manifestações poéticas. Como é natural os poetas que as produziram contribuíram para a divulgação dos novos conhecimentos, já que a poesia atinge uma audiência muito mais vasta do que os complicados tratados científicos. O primeiro, poema publicado em França e Inglaterra em 1578, anuncia já o grande debate que se seguiria:


Aqueles letrados que pensam (pensar, que brincadeira absurda)
Que nem o céu nem as estrelas giram,
Nem dançam à volta desta grande bola terrena;
Mas que a própria Terra, este nosso globo volumoso,
Dá uma volta em cada vinte e quatro horas:
E nós parecemos novatos do interior
Recém trazidos para bordo, para aventuras nos mares
Que ao afastarem-se da terra , supõem que o barco fica quieto, e a terra vai
Assim, nunca uma seta lançada para cima devia,
Cair no mesmo lugar onde está o atirador

No segundo, publicado em 1611, e escrito pelo teólogo inglês John Donne adensam-se as preocupações. Intitulado, A Anatomia do Mundo lamenta-se a pulverização das velhas teorias:


A nova Filosofia põe tudo em dúvida,
O elemento do fogo está posto de parte;
O Sol está perdido, e a Terra, e não há engenho de homem
Que possa indicar onde o procurar.
E livremente os homens confessam que este mundo está exausto

Quando nos Planetas e no Firmamento
Eles procuram tanta novidade; depois vêem que isto
Se fragmentou novamente em Átomos .
Tudo está em pedaços, toda a coerência desapareceu...

Em 1543, Copérnico, ainda terá visto um exemplar da primeira edição do seu livro De Revolutionibus Orbium Caelestium mas, segundo a tradição, já no leito de morte. Pior sorte teve Giordano Bruno. Ao tempo a dissensão incluía uma questão que hoje ainda não foi resolvida, os limites do Universo. Os teólogos diziam que só Deus é infinito. Num Universo infinito onde se localizaria o trono de Deus? Bruno afirmava que o seu Deus era mais poderoso pois criara um Universo infinito Esta ousadia e outras, valeram-lhe a fogueira em 1600.

Os séculos continuam a passar, a influência mágica de Igreja esbate-se e a religião desiste de perseguir a Ciência. A teoria da evolução da matéria, e do aparecimento da vida na Terra, o parentesco profundo do Homem com tudo o que existe no Universo contradizem a cosmologia bíblica sem reacções fatais, contudo, ainda há quem continue a fazer uma interpretação literal do Livro do Génesis.


O Universo não foi criado em seis dias mas em milhares de milhões de anos, o cérebro dos nossos mais longínquos antepassados era cerca de três vezes menor, que o do Homem actual, as lutas entre animais são anteriores à existência do Paraíso Terrestre, o célebre casal Adão e Eva, não foi expulso daquele lugar de delícias onde como relata o livro do Génesis Deus passeava pela viração do dia.


A existência de um Deus para adorar é importante na vida do ser humano. O livro mundialmente respeitado, O Sagrado e o Profano, de Mircea Eliade afirma que o homem a-religioso no estado puro é um fenómeno muito raro, mesmo na mais dessacralizada das sociedades modernas. Os velhos deuses homéricos demasiado humanos, que roubam, mentem, cometem adultério, vivem no Olimpo, Aristóteles declara que todos atribuem o lugar mais elevado, o céu, ao divino, certos teólogos não aceitam a ideia de um universo infinito porque assim têm dificuldade em localizar o trono da Deus, no livro do Génesis, Deus passeava pelo jardim do Eden. Onde mais pode estar a divindade?

Heraclito de Éfeso, que alcançou fama de sábio, é o protagonista de um episódio contado por Aristóteles. António Damásio um, entre os maiores neurocientistas mundiais, apresenta uma visão da existência interior do ser humano verdadeiramente espantosa, na riqueza das possibilidades que encerra. O primeiro, cuja actividade filosófica principal terá terminado por volta de 480 a. C., era nobre de nascimento mas recusou os privilégios que lhe pertenciam vivendo com sobriedade. Terá escrito um livro intitulado Da Natureza dividido em três partes: Do Universo, Da Política, Da Teologia. Dedicou-o a Ártemis e colocou-o no templo da deusa A fama do filósofo expandia-se territorialmente e certo dia um grupo de curiosos desejou conhecê-lo. Que esperariam encontrar? Certamente algo diferente do que vêem, um homem comum, simples, friorento, que se aquece junto ao forno. Nada de raro, nada de excepcional, por isso, decepcionados, retiram-se. Em vão Heraclito tenta detê-los proferindo a célebre frase, Os deuses também estão aqui presentes. A palavra aqui, será o lugar onde se encontra, em casa junto ao forno, ou será o próprio filósofo, o seu corpo convertido em templo?

António Damásio no livro Ao Encontro de Espinosa afirma que vivemos rodeados de estímulos capazes de evocar a espiritualidade, e enumera alguns: contemplação da Natureza, reflexão sobre as descobertas científicas, experiência das artes. O cientista pensa que estes estímulos, e uma vida equilibrada, virtuosa, e delicada proporcionam momentos de efémera plenitude, aquilo que ele classifica de momentos de perfeição, visões furtivas do divino, breves confortos que deixam esses seres humanos à espera do próximo momento de perfeição e da próxima visão furtiva.


O Homem procura um Deus para adorar.

2 comentários:

  1. Olá,

    Bom dia, gostava de dizer que esta leitura para inicio de semana foi uma boa sensação que me ofereceu:)

    Vou continuar a visitar o blog que recomendo vivamente a todos, pelo seu interesse educativo.

    Boa continuação.

    Abraço

    Claudia

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  2. Bondade sua gostar das minhas palavras. Gostei de ficar a saber que a Cláudia existe. Saúde!

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